Anarquistas, punks, cineclubes e os anos 80

“Bem moçada, hoje é bem mais fácil colocar um brinco na orelha, deixar o cabelo comprido ou careca, vestir um coturno, uma calça rasgada ou assumir assim, digamos, uma atitude de afronta, rebeldia, protesto e dizer não, muitos não”, escreve o jornalista Zé Beto Maciel.

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Foz tinha três fanzines: Chuá, Kratos e Mova-se Caralho que virou referência na imprensa alternativa dos anos 80 

Zé Beto Maciel 

Bem moçada, hoje é bem mais fácil colocar um brinco na orelha, deixar o cabelo comprido ou careca, vestir um coturno, uma calça rasgada ou assumir assim, digamos, uma atitude de afronta, rebeldia, protesto e dizer não, muitos não. 

Faz parte do stablishment, tá moda, virou produto de mercado. Nenhum pai ou mãe condena seu filho ou filha a ficar com alguém com as características citada acima. Ser diferente hoje é ser igual. 

Agora, ser diferente nos anos 70 e 80 era incomum, classificado, rotulado e marginalizado. E como foram bons os anos 80, a década perdida para o Brasil em termos econômico, foi uma década de efervescência na música, literatura, história em quadrinhos e na atitude com as coisas que estavam acontecendo no brasirô. 

Tudo isso sem essa mídia que se tem agora, sem internet, mas com muita comunicação e nós aqui no Paraná e em Foz do Iguaçu, estávamos na ponta dos cascos.

É dessa época os Titãs, a Legião Urbana, que os punks chamavam de legião urbana da boa vontade, Replicantes, Ira, Camisa de Vênus, Plebe Rude, Capital Inicial (argh!), Ratos do Porão, Inocentes, Garotos Podres, Paralamas do Sucesso (paralhamas, como chamávamos), Olho Seco, Engenheiros do Hawai (blergh!). 

Ainda tinha um monte: Hanoi-Hanoi, Lobão e seus Ronaldos, Biquini Cavadão, Metrô (a gostosa Virginie), Blitz, Barão Vermelho, Ultraje a Rigor, Detrito Federal, Pupilas Dilatadas, os Mulheres Negras, as Mercenárias, Defalla, Garotos da Rua (pura bosta), Doutor Silvana, Sempre Livre, A Cor do Som, Kid Abelha (Q.I. de Abelha), Heróis da Resistência (ou da Insistência). Porra, era um montão que devo ter esquecido um monte. 

No Paraná teve muitos: Paz Armada (quem não cantou Ódio de Judeu), Beijo a Força, Heróis da Matinê, Excomungados, Bife Sujo & Cia, a velha Blindagem, Vorvoloka Play e Le Stop Bety – as duas últimas pura pose. Aqui de Foz, o Ronildo Pimentel – o Roni Metal – deve ter apontado mais um monte. 

Imprensa alternativa – Como surgiram essas bandas e um monte desapareceram foi no mesmo boom das histórias em quadrinhos, dos cineclubes, da literatura anarquista e da imprensa alternativa. 

Na época surgiram várias revistas de hq’s: Chiclete com Banana (do véio Angeli), Aninal (feio, forte e formal), Circo, Geraldão, Piratas do Tiête, Níquel Náusea e as estrangeiras Heavy Metal e algumas outras editadas pela L&PM. 

O lance eram os fanzines e se fazia de tudo: Inquérito, Mova-se Caralho, Kratos, Chuá, Leve Desespero, Bife Sujo e Cia, Absurdo Zine (da Paula Loira), Combate Branco (skinhead puro e preconceitoso), Caos, Contra-Informação, Opção Cultural, Mijo, Press, Sindicato do Delírio, Mau, Letra Livre, Sem Perfil, Contra Corrente, Gilete Press, Karne Krua, Barata, Anarkia, Entre Amigos, Falange Anarquista, Núcleo de Consciência Punk, Ex-Via. Era uma cacetada. 

Os próprios fanzine eram um copilados de literatura, hq’s, dados das bandas, revolta contra o sistema, eram feitos com colagem, xerox (muito xerox por sinal) e distribuídos da forma mais alternativa possível, mas e, principalmente, pelo Correios. 

Zine de Foz – Eram os anos 80 e fazíamos de tudo. Foz, como podia deixar de ser, tinha três fanzines. O Chuá, de Roni Metal e Dilson Baiano Júnior; o Kratos, que divulgava a banda Morthal, do Nilton Bobato e o Mufi (Movimento Underground de Foz do Iguaçu). 

E tinha o Mova-se Caralho. Era isso mesmo. Um baita caralhão na sua capa e detonando tudo e todos. Feito por mim e pelo Cássio Pirkel – um arquiteto que hoje anda perdido por Guarapuava, o Mova-se virou referência pela sua qualidade, artigos, linguagem despojada e assumidamente agressiva, poesia, hq’s, cinema e cineclube. 

No seu expediente dizia-se que o fanzine era o órgão oficial de contra-informação e do cineclube de Foz do Iguaçu. O cineclube a gente levava nos bairros, com um projetor de 16 mm, um pano branco, e dá-lhe cinema de arte, independente e o povão gostava.

Na Facisa, atual Unioeste/Foz, surgiu o Cineclube T-40, comandado pelo Pena Catta e Ildo Carbonera. Durou pouco, mas foi legal. Ah, o Mova-se circulava na Facisa. Nem precisa dizer o rebu que deu. 

Líbia e Europa – Mas a referência estava pelo Brasil afora e pelos quatro cantos do mundo. Recebíamos correspondência da Itália, Alemanha, Espanha, Portugal, França e EUA. Eram as rádios Onda Rossa na Itália, Onda Verde na Espanha, o Move dos EUA e as federações anarquistas da Itália e da França. 

Foi através delas que estivemos por duas vezes, em 86/87 e 89, por aquelas bandas. Sem dinheiro no bolso e com direito a um pulo na Líbia e no Oriente Médio. 

Na Líbia pedimos dinheiro ao Kadafi para fazer um grande jornal alternativo enquanto o pessoal do Tupac Amaru e do Sendero Luminoso pediam a grana para comprar armas. Kadafi não atendeu o nosso pedido. 
As viagens á Líbia e a Europa foram através da Federação Paranaense de Cineclubes, também anarquista, que era coordenada pelo José Gil de Almeida – hoje escritor de livros de Lino Oviedo, da crise da Argentina e da tentativa de golpe da Venezuela. José Gil escreveu também um livro sobre a Líbia e o Kadafi. 

Em Curitiba tinha quatro cineclubes: Sindicato do Delírio, Cineclube Requião (vejam só), da Federação e um na PUC e outro na UPE, senão me engano. Em Maringá tinha dois, Londrina mais um e assim por diante. Éramos anarquistas e botamos para foder na época. 

Foi através dos fanzines, cineclubes, e esse pessoal da época que pulularam esse montão de bandas. Em Curitiba ainda tem que citar o Thadeu, os irmãos Prado, o Sérgio Virallobos, a Alice Ruiz, Helena Kholody e o Paulo Leminski – já em estágio terminal de uma cirrose para lá hepática. 

Eles armaram umas revistas, Odiário, 69, Sala 17 e outra que não me lembro. São poetas. Tinha a feira do poeta na praça com o seguinte o bordão: passa na praça que a poesia te abraça que nós, os punks, pregamos: passa na praça que os viados te abraça. 

Mas os Prado, Virallobos, Alice e Leminski e Cia não tinha nada a ver com isso. Eram poetas mesmo e até freqüentavam os bares como a Amarilis, Dolares Nervosa e outros que surgiram no Lago da Ordem (Bar do Estudante). 

Vale um parênteses: Curitiba é a cidade mais pose do Paraná. Tirando esses caras, o resto era aquelas meninas de topetes, tudo igual uma a outra e nós, é claro, detonando todas. 

O Mova-se durou três números, depois fizemos o Caos, o Contra-Informação e por fim o Suicídio Coletivo. Estávamos de saco cheio do que havia se transformado tudo aquilo, entramos na nóia e cada um foi fazer o que devia ser feito. Guardamos boas saudades como a My Way do Camisa de Vênus. 

“fazdefoz” – Do Mova-se, ouso transcrever uma espécie de editorial do primeiro número para exemplificar como éramos arrogantes: “Irmãos. Chegamos. Aliás, estamos aqui há um bom tempo. Resolvemos ser originais. A originalidade é apenas uma imitação melhor que as outras. Este boletim sai hoje. O próximo sai amanhã. Esperem”. 

“Sabemos que produzir algo nessa cidade é uma merda. O cineclube é para isso mesmo. A cidade vai continuar como está ou feder mais ainda. É o que esperamos”. 

“Vamos invadir todos os espaços. Levaremos cinema, cultura e ejaculação precoce a todos. Não vai sobrar um. Bares, boates, bairros, escolas, favelas, igrejas e cadeias. Todos, sem distinção, vão entrar na dança. Podem levar o papagaio, a farofa e o baseadinho”. 

“Esta cidade precisa ter acesso ao cinema de arte ou independente. Vamos criar um pólo cultural alternativo, reunindo pessoas e interessados afins para aprender a fazer cinema e talvez filmes”. 

“Vamos entrar na briga pela tal casa da cultura (a fundação cultural não tinha sede). É uma fudeção uma cidade como esta não ter um local onde os artistas toquem punhetas e troquem palavrões”. 

“Meus velhos estão de saco cheio de tanta reunião na hora da novela. Precisamos de espaço. A arte está para a cultura como a cultura está pela arte e vice-versa. É tudo abobrinha e estamos cansados disso”. 

“Vamos trazer os melhores filmes já rodados no Brasil e outros que vocês nunca viram. Abaixo a pornografia. Não que sejamos contra. É que só tocar bronha também enche o saco, ou melhor, esvazia. Nisso nós temos experiência”. 

“Promoveremos encontros, festivais, cursos, palestras, orgias e bacanais – tudo ligado ao cinema, claro. Vamos derrubar os enlatados americanos e as novelas da Globo. Menos a das oito que a minha mãe adora”. 

“Todos os interessados em participar desse cineclube são bem vindo a bordo. Damos preferência as mulheres e as bichas. As bichas são para os tempos de vacas magras”. 

“A tchurma da pastoral da juventude já está participando. Não discriminamos ninguém. Traçamos todos. Procurem os redatores deste boletim. Telefonem ou deixem recado. Sem baixaria no telefone, minha mãe é brava. Esperamos todos e aguardem. O que será de Foz sem nós”, assim termina o editorial intitulado “fazdefoz”. 

D’guaú – Pois é moçada. Depois disso inventamos o d’guaúkgb&cia – uma espécie de oficina de artes – com Pirkel, Adriana Vecchi, Roger Savaris e Tadeu Paniágua. Foram algumas invenciones, muita piração, participação política e cada um, com a crise, foi buscar seu canto. Nessa turma tenho que destacar a Isabel Farias, Rogério Nonato, Claudinha Chantal, Ronildo Pimentel, Clari Freitas, Darwin Andrade, Zé Moreira e outros tantos que não me lembro mais. 

Depois da D´guaú – que é algo no guarani como de mentira ou de brincadeira – eu, o Bobato e Silvio Campana inventamos a Fanzine – uma revista destinada para os jovens. No seu primeiro número, um rapaz chamado Alexandre Palmar, de 16 anos, escreveu um artigo sobre o Titãs e detonou os críticos do disco “Tudo ao Mesmo Tempo Agora”. 

Nesse número publicamos um hq do Laerte que ensinava, de maneira bem didática, como fazer um fanzine. Tinha o Le Stop Bety, Jap’s Teen, aids e o movimento estudantil. 

No editorial do segundo número, escrevemos o seguinte: “Aviso os navegantes: Todos sabem que colocar a fanzine na praça não é fácil. Além de vender as nossas vózinhas para fazer sabão, estamos com a polícia em nosso encalço cobrando uma porrada de cheques frios e os advogados das nossas ex-mulheres cobrando a pensão dos nossos ex-filhos. É foda”. É por aí vai. 

No segundo número teve um artigo do Ricardo Wild, então com 20 anos e secretário da Adeafi, matérias sobre o Dorsal Atlântica, festival de teatro, violência urbana e uma história em quadrinhos com dois personagens “Os 2 xirus em agitadores da cultura”. Falando sobre o que? A lei de incentivo fiscal a cultura. 
Cês viram. Tudo isso aconteceu nos anos 80, no século passado, e tem muita coisa ainda em pauta no começo dos anos 2000. E aí moçada, vamos ser agente dessa história? 

Nos anos 80 – a década perdida – pulularam as bandas, os fanzines, os cineclubes e nos estávamos na fita 

“Vamos derrubar os enlatados americanos e as novelas da Globo. Menos a das oito que a minha mãe adora”, dizia o editorial do Mova-se 

“Na Fanzine, um rapaz chamado Alexandre Palmar, de 16 anos, escreveu um artigo sobre o Titãs” 

Fonte: Revista Cabeza, edição nº 11, julho de 2002

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