Aida Franco de Lima – OPINIÃO
No Brasil colonial, os senhores do engenho moravam na casa grande e relegavam aos escravos o abrigo na senzala. Esse passado triste de nossa história, em que pessoas livres foram transformadas em máquinas de serviço, ainda abriga resquícios em nosso cotidiano. De forma velada, às vezes sutil, às vezes escancarada.
Por exemplo, quando o Ministério do Trabalho é acionado para libertar trabalhadores em situação análoga à escravidão, explorados por pecuaristas ou “empresários” outros do ramo. Ou quando o mercado financeiro fica irritado com investimentos nas áreas sociais, que para ele são gastos. Ou como nesta semana, quando o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou, entre outros, a isenção de Imposto de Renda para quem recebe até R$ 5 mil por mês. E deixou para taxar mais, quem ganha acima de R$ 50 mil mensalmente. O mercado reagiu mal, dizem as manchetes.
As senzalas deram lugar às edículas, nos fundos das residências, e depois, talvez até mesmo para evitar desperdício de espaço, sucumbiram-se aos quartinhos, já nas alas internas, mas naquelas menos nobres das casas, perto da cozinha, do banheiro. Hoje, esses espaços estão mais reduzidos, porque nem todas as famílias que antes conseguiam ter serviçais a seu dispor 24 horas por dia conseguem manter o patamar. Afinal, foram assegurados direitos como hora extra, registro, quando o trabalho semanal for acima de três dias, e adicional noturno. Quando tais benefícios foram concedidos, entre os anos de 2013 e 2015, o mercado também não gostou “nadica de nada”. Dizia que isso levaria a um desemprego em massa.
Podemos comparar os senhores do engenho com banqueiros, que tão-somente administram o dinheiro alheio. E eles ficam nervosos e irritados quando alguma benfeitoria é feita para a senzala. No caso, a todos nós que não nos enquadramos nas grandes fortunas. A depender do mercado financeiro, as edículas e cozinhas que hoje viraram espaços nobres nas residências voltariam a servir de abrigo para empregados e para guardar amontoados de coisas praticamente inservíveis.
Não me lembro de ter visto o mercado reagindo à divulgação, na segunda semana de novembro, da enorme lista de grandes empresários que nem são do setor de eventos e foram beneficiados com o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (PERSE). Instituído pela Lei 14.148, em maio de 2021, com o objetivo de mitigar os impactos das medidas de isolamento adotadas durante a pandemia de covid-19, é algo que deveria ser voltado especificamente para o setor de eventos. Ofereceu benefícios como a redução de tributos para auxiliar empresas na recuperação econômica. Porém, na lista há empresas que não têm nada a ver com eventos, as quais deixaram de pagar mais de R$ 6 milhões de impostos, e o mercado não ficou nervoso. O dólar não disparou!
Repararam que o mercado é algo intangível, que a gente não vê, mas ele sempre tem voz? Basta qualquer notícia de que vão retornar os impostos à base da pirâmide social para o mercado, que ocupa o topo, reclamar, espernear, fazer previsões alarmistas.
Tão fominha que é, o mercado não quer perceber que, quando o governo abre mão de uma fatia do IR, esse dinheiro vai circular na economia local e vai aquecer esse mesmo mercado, que só sabe reclamar de barriga cheia. A depender do mercado, rasgam-se todos os direitos conquistados, refaz-se o quartinho da empregada ou mesmo a senzala, com um detalhe: ainda cobrando aluguel.
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