O inimigo não mora ao lado

O apelo à adesão da população brasileira ao chamado distanciamento social, em decorrência da pandemia de Covid-10, tem ocupado espaço constante nas declarações de gestores municipais e estaduais. E não é sem razão.

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Danielle Araújo 
Solange Assumpção 

O apelo à adesão da população brasileira ao chamado distanciamento social, em decorrência da pandemia de Covid-10, tem ocupado espaço constante nas declarações de gestores municipais e estaduais.  E não é sem razão.

O distanciamento social – pelo pouco conhecimento ainda acumulado sobre o comportamento do vírus no corpo e no ambiente, somado às ausências de vacinas e de tratamentos rigorosamente comprovados –, é considerado como a medida preventiva mais eficaz para conter o alastramento da doença.

Se ficar em casa é a melhor opção, há que se refletir em que medida essa proteção à saúde individual e coletiva tem gerado o agravamento de uma outra forma de “pandemia”, enfrentada por milhares de mulheres espalhadas pelo mundo: a da violência. Para um significativo número de mulheres, ficar em casa representa medo, sofrimento e morte. Os números que seguem falam per si.

Em pouco mais de dois meses de isolamento social, cresceu consideravelmente o percentual de procedimentos urgentes e de flagrantes de violência contra a mulher. Em todo o Brasil, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em março deste ano, foram registrados cerca de 2.066 casos de denúncias, em redes sociais, o que representa cerca de 1.508 casos a mais do que as ocorrências do mês de fevereiro. Ratificando esse aumento do número de casos, o Ministério Público de São Paulo notificou 177 incidentes dessa natureza em fevereiro e 268 de casos no mês de março, o que corresponde a uma elevação de 51,4%.

Em Foz do Iguaçu, o cenário de violência contra as mulheres também é crescente. Segundo os dados da Polícia Civil, de janeiro a abril de 2020, a cidade registrou 2.148 ocorrências, cerca de 592 a mais do que o notificado no mesmo período do ano passado. Esse número representa um aumento de 38%. E esse percentual de aumento da violência pode ser ainda maior em Foz, uma vez que o resultado final das ocorrências do mês de abril não foram ainda integradas a esse montante.

Se essa realidade causa espanto e indignação às leitoras e aos leitores, vale destacar que são dados aproximados da realidade, tendo em vista as situações comuns de subnotificação envolvidas na violência contra as mulheres de todas as idades, inclusive a sexual desferida contra crianças. Essas subnotificações, em tempos de isolamento social, tendem a ser cada vez mais crescentes pela presença permanente dos agressores em casa. Sem mobilidade, a mulher em situação de violência encontra ainda mais dificuldade de acesso presencial e on-line aos serviços de atendimento e de orientação pertinente.

Não bastasse o medo, o sofrimento e o risco à integridade da pessoa, as mulheres violentadas, em grande medida, são obrigadas a conviver com a agressão dos ditos companheiros, primos, padrastos, padrinhos, tios, isto é, pessoas que usam o espaço de confiança familiar para infligir e atacar meninas, adolescentes, jovens, adultas e idosas. Infelizmente, muitas vezes, o inimigo não mora ao lado. Ele está dentro da própria casa.

O que se verifica dessa triste realidade é que a necessidade de manutenção do isolamento social para conter a pandemia de Covid-19 não atenua essa “pandemia silenciosa”, secularmente instalada nas sociedades do planeta, dentre outras, cujo alvo são grupos historicamente excluídos. Antes pelo contrário, a salienta. O simples ato de ficar em casa, algo banal para muitas pessoas, pode tornar-se um atentado à vida de outras – mulheres de todas as idades e condições socioeconômicas – por causa de seu gênero. 

A saída, então, é desqualificar o distanciamento social como medida preventiva? Não, pois, neste momento, trata-se de uma medida que nos protege da tragédia aparentemente incontrolável da Covid-19. Mas fica posta a necessidade de reflexão sobre a extinção de “pandemias” cujo controle está plenamente ao nosso alcance. No caso da violência contra a mulher, os verdadeiros inimigos são a ignorância, a hipocrisia, a intolerância e um machismo estrutural que vêm alimentando a mais duradoura das pandemias da humanidade, gerando dor e morte ao longo dos anos. 
 
* Danielle Araújo  é antropóloga em Foz do Iguaçu.

*Solange Assumpção é pedagoga em Foz do Iguaçu.

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