Os livros não mordem

Nathalie Husson, da Livraria Kunda, conta sobre sua vinda da França para o Brasil, a criação da livraria, um pouco da história da empresa, os hábitos de leitura dos iguaçuenses e a crise que ameaça destruir duas das maiores redes nacionais de distribuição de livros e, com elas, as livrarias independentes.

Apoie! Siga-nos no Google News

Por Mauro Sérgio Figueira
Fotos: Marcos Labanca

Em 2019, no dia 14 de julho, a Revolução Francesa, importante evento da civilização ocidental, completará 230 anos. A data marcará também os 30 anos da Kunda Livraria, fundada pela francesa Nathalie Husson e o marido, Claimar Granzoto, exatamente no aniversário de 200 anos da Queda da Bastilha em Paris.

Ao longo destas três décadas, a livraria da Rua Almirante Barroso vem mantendo a contribuição e participação ativa na vida cultural de Foz do Iguaçu. O casal guarda e exibe, com orgulho, um longo catálogo de recortes de jornais que atesta a presença da livraria em importantes eventos culturais da cidade. Vale a pena destacar a lista extensa de renomados escritores nacionais que lançaram seus livros na Kunda. 

Nesta entrevista, Nathalie Husson conta sobre sua vinda da França para o Brasil, a criação da livraria, um pouco da história da empresa, os hábitos de leitura dos iguaçuenses e a crise que ameaça destruir duas das maiores redes nacionais de distribuição de livros e, com elas, as livrarias independentes – o que eliminaria de vez o já limitado acesso a livros no Brasil.

Você me emprestou este livro de Miguel Sanches Neto, Viagem a Foz, que contém um breve e interessante relato de sua história com sua família. Você poderia nos contar mais dessa história? Por que veio para Foz e como surgiu a ideia da livraria?
Eu sou formada em Direito e meu destino estava traçado. Vindo para o Brasil, quebrei a história familiar. A minha família é composta por professores lá em Paris, onde o componente cultural é muito forte. Sou também da geração pós-1968 inserida em um contexto de pós-colonialidade e de uma nova realidade que se formou em torna da questão dos direitos humanos. Aquela época foi o auge da solidariedade internacional. Moldada por essa filosofia, fui estudar Direito e Direito Internacional. Mas a minha sede de conhecimentos e de abertura ao mundo me fez buscar outros universos. Influenciada por meu pai, os livros são esse outro universo. Aos 17 anos, no primeiro ano da faculdade, fui direto achar um emprego numa das maiores e antigas livrarias de Paris que frequentava desde a adolescência – hoje infelizmente fechada; só ficou a conceituada editora nas áreas de direito e de ciências humanas, na Praça da Sorbonne: as Presses Universitaires de France (PUF). Nas relações de vizinhança, pois o Quartier Latin abriga a maior concentração de editoras e de livrarias da capital, fiz amizade com o dono de uma livraria-editora pouco convencional: L’Harmattan.

Claimar Granzoto e Nathalie Husson: 30 anos da Kunda Livraria em julho de 2019.

A vocação inicial da livraria-editora era a publicação e a venda de livros sobre a África e os países do Terceiro Mundo, como eram chamados os países emergentes naquela época. Hoje, é a primeira editora independente francesa, publicando uma média de cinco livros por dia, a maioria trabalhos universitários. Por isso ficou famosa pelos pesquisadores do mundo inteiro. A livraria da Rue des Ecoles, na frente do Collège de France, detém um dos maiores fundos de livros em português, pois o Denis Pryen adquiriu o que era a livraria do Partido Socialista português, exilado em Paris no tempo da ditadura. Essa livraria tinha um secretário que era estrangeiro, o meu futuro marido, Claimar. Encontrei-o lá, empregado sem carteira assinada. Mais tarde, no período de redemocratização do Brasil, ele planejou voltar. Acreditava que aqui seria mais fácil montar uma empresa. Vi meu desejo de alteridade se concretizar; vim junto. A livraria foi uma escolha natural quando decidimos nos estabelecer em Foz. Criamos a Kunda em julho de 1989, 30 anos atrás.

Então esta é a primeira livraria de Foz?
Na verdade, havia sim uma outra livraria. Funcionava no endereço onde hoje está localizada a maior papelaria do centro de Foz. Chamava-se Renapel. Mas a população de Foz não estava muito familiarizada com os conceitos de livraria e de livreiro. Nisso vimos a potencialidade de Foz do Iguaçu. Era uma cidade longe dos grandes centros econômicos e culturais, mas isso não era um problema para mim porque eu queria mesmo morar em uma cidade menor. As megalópoles como Rio e São Paulo assustavam. Aqui eu poderia ter uma vida mais sossegada. As Cataratas do Iguaçu, um dos lugares mais deslumbrantes do planeta, a Itaipu, uma das maiores obras de engenharia civil, e um aeroporto internacional recebendo turistas do mundo inteiro entraram na balança na hora da decisão. Essa potencialidade mais ou menos se confirmou.

Como você, em linhas gerais e com a sua interpretação, descreveria os hábitos de leitura do iguaçuense?
Foz do Iguaçu é uma cidade muito desigual, mais desigual do que outras cidades do Sul do país. Há diferenças no repertório cultural, e isso gera um ambiente em que, na minha opinião, a maioria simplesmente não lê. Na verdade, não temos números concretos para confirmar a hipótese. A RPC [Rede Paranaense de Comunicação] fez, há uns dez anos, se não me engano, a única pesquisa ou levantamento cultural. Seria interessante realizar uma nova pesquisa ampla sobre os hábitos culturais do cidadão em Foz do Iguaçu. Foz sofre também da sua condição geográfica de cidade do interior, longe dos centros econômicos e culturais, e nunca fomentou uma tradição literária. Enquanto isso, a implantação de novas universidades em particular da Unila mudou o perfil da cidade trazendo pessoas mais sensibilizadas em compartilhar e produzir cultura.

"A implantação de novas universidades em particular da Unila mudou o perfil da cidade trazendo pessoas mais sensibilizadas em compartilhar e produzir cultura".

Seria uma contribuição relevante do poder público realizar essa pesquisa?
Conhecer a realidade é interessante para a tomada de decisões! Foz não apresenta o mesmo perfil de quando abrimos a livraria. Meu trabalho consiste em propor acesso a livros. No meu conceito de livraria, eu o entendo como se fosse propor uma biblioteca ideal ou uma extensão da minha casa, acrescentado dos best-sellers e mais vendidos da moda! Por isso muitos elogios chegam das pessoas que vêm de fora e saem dizendo: “Olha, tem uma livraria lá em Foz do Iguaçu, uma livraria independente com um acervo de alta qualidade”. A Kunda é uma das últimas livrarias independentes – fora as grandes redes de shopping centers – do interior do Paraná, um território equivalente ao da França. Na França, onde existem cerca de 3.500 livrarias; e no Brasil inteiro, um pouco menos do que isso.

Então parece haver um grupo muito pequeno de leitores em Foz.
Os leitores que se dirigem à livraria o fazem mais por obrigação. Obrigados na escola, obrigados na faculdade. Mas a livraria é um pontinho do iceberg num universo muito maior que somente uma pesquisa poderia abarcar para medir o fenômeno.

Você percebe em seus clientes uma preferência por um segmento de livros?
Aqui vendemos um pouco de todos os gêneros. Quando abrimos a livraria, o que nos permitiu montar o acervo não foi a existência de leitores, mas sim venda de livros didáticos para os alunos da rede pública e privada. A ausência de uma política nacional de livros didáticos obrigava os alunos das escolas públicas a comprar livros, e isso ocorria o ano inteiro. Depois, a venda de didáticos foi minguando: o PNLD [Plano Nacional do Livro Didático] se tornou o maior programa de livros didáticos do mundo, e as redes privadas passaram a apostilar os conteúdos. Na briga entre editoras, os pequenos colégios que ainda hoje adotam livros didáticos negociam diretamente com elas. Tudo isso tira o campo da livraria.

"Os índices de leitura e de compra de livros melhoraram, mas estão ainda longe dos países mais desenvolvidos".

Em compensação, porém, todo ano abria uma faculdade nova em Foz do Iguaçu, e a livraria injetava títulos novos dos cursos recém-formados. Os índices de leitura e de compra de livros melhoraram nos últimos 15 anos com o fortalecimento do ensino e do poder aquisitivo, e ultrapassamos um pouco da primeira fase que eu chamo de fase da alfabetização. Mas os índices de leitura do brasileiro estão ainda longe dos países mais desenvolvidos – quatro contra sete na Europa na média de livros lidos por ano por pessoa. 

E hoje, após o livro didático, há uma preferência por um segmento específico?

Visita de Miguel Sanches Neto à
Kunda, antes do lançamento do livro
"Viagem à Foz", em 2018 –
Foto: Kunda

A literatura é o parente pobre dos gêneros. Adultos não leem romances no Brasil de modo geral. O setor é literalmente parado, salvo para a faixa etária do adolescente e jovem adulto que conheceu um boom nos últimos anos.  Brincando, Miguel Sanches Neto exclamou na livraria: “Nathalie, vou parar de escrever romance. Não dá dinheiro, não tem leitor”. Então, literatura, basicamente, não se lê, tampouco em Foz do Iguaçu. O que move a livraria continua sendo o livro paradidático, aquele que está na lista dos materiais na entrada escolar ou é recomendado pelo colégio durante o ano. Mas se trata de uma leitura obrigatória. A constatação é muito triste, pois queria que a realidade fosse diferente, que a gente curtisse um livro por prazer, mas isso ocorre com pouquíssimas pessoas. Agora existe um fenômeno sociológico tipicamente brasileiro, que é a busca por Bíblias evangélicas ou católicas e pelo livro de autoajuda para enriquecer, se for possível, o mais rápido, ligada à ideologia crescente da Teologia da riqueza. Na área do direito, o Vade Mecum é o best-seller. Mesmo assim, constituímos um acervo de qualidade e com o tempo alguns livros esgotaram. O leitor exigente consegue encontrar o único exemplar na Kunda para o Brasil inteiro. O escritor português convidado para a Feira do Livro de Foz Gonçalo M. Tavares levou uma mala de livros esgotados em Portugal e no Brasil.

Você mencionou as universidades que abriram em Foz nos últimos 10 ou 15 anos. Há uma relação próxima entre a sua livraria e a rede universitária? E a sua livraria foi impactada positivamente pela criação da Unila?
A chegada da Unila e do Ceaec mudou o perfil da cidade. São duas instituições importantes para a cidade e em particular para a livraria. Do Ceaec, são leitores e pesquisadores vorazes, enquanto a Unila trouxe professores de alto gabarito, com doutorado, e os livros impressos continuam sendo a fonte das pesquisas. Quando a Unila foi implantada, nove anos atrás, foi num período que estávamos pensando em fechar a livraria. Foi o Dr. Hélgio Trindade, presidente da Comissão de Instalação da Unila e reitor, que nos convenceu ficar em Foz. 

Eles frequentam a livraria? E os alunos também?
Não todos. Para os alunos, infelizmente é mais complicado porque nem todos   dispõem de uma renda. Hoje o acesso aos livros se dá via PDF na internet ou nas bibliotecas, mas os professores, embora não todos, gostam de comprar livros.

Você não acha que pode estar havendo uma substituição dos livros pelas mídias eletrônicas? As pessoas estão deixando de estudar com os livros e passando a estudar com o YouTube?
De fato, a internet está operando uma mudança cognitiva sem precedente muito mais profunda do que uma simples transferência de suporte do papel para a tela. É o próprio processo de conhecimento que está em jogo. Alguns estudiosos já falam que entramos na era da functional stupidity. Parece que o estrago será bem maior: as pessoas acham que leem, recebem informações, mas são incapazes de processá-las. A sequência de informações e de dados em modo contínuo não deixa espaço para a reflexão, o que a leitura profunda provocava.

"A sequência de informações e de dados em modo contínuo não deixa espaço para a reflexão, o que a leitura profunda provocava" .

De outro lado, está ocorrendo uma concorrência de produtos de cultura de massa ofertados pelas empresas comerciais da net. Chamo isso de efeito Netflix. Num clique de botão do seu celular, nem precisa mais de computador, você pode acessar um filme, um jogo. Quando você volta cansado da pressão do dia a dia corrido, engolir um livro, mesmo um romance mais leve, necessita um tipo de esforço que você só pode superar com um treinamento – aí vem o papel da educação na família e na escola. A leitura fica no décimo lugar no ranking das atividades culturais do brasileiro.

Como os pais poderiam incentivar as crianças a ler?
Lendo livros. Lendo para elas desde bebês. Há mães que leem com o bebê na barriga. Depois, compartilhando leitura na fase da alfabetização. Mas o espelho se faz com uma mãe lendo! A criança quer saber por que uma mãe é capaz de largar tudo para enfiar a cabeça num livro. E quer reproduzir o gesto. 

Nós sabemos que as grandes redes de livrarias, como a Cultura e a Saraiva, estão em crise severa. Essa é uma crise que afeta só as grandes ou afeta as independentes também?
O importante nessa crise da Cultura e da Saraiva, as duas redes responsáveis por 40% do varejo do livro no Brasil, é como ela pode afetar o mercado num todo. As editoras de médio e grande porte, ou até multinacionais, serão certamente capazes de superar as perdas financeiras, que não são pequenas. Mas para as pequenas editoras, a falta de caixa pode ser fatal. Uma das consequências já sentida, somada à crise econômica provocada pela crise política, é a diminuição de títulos oferecidos ao leitor: a bibliodiversidade que marcou a produção dos últimos 15 anos através das numerosas criações de editoras novas já minguou de dois anos para cá. 

E quais são as causas dessa crise? Tem a ver com os hábitos de leitura, a entrada de novas distribuidoras ou a crise econômica geral?
É a soma de vários fatores. A mudança planetária de paradigma cultural – até na França, um país de tradição literária, os índices de leitura estão baixando e o setor do livro está em crise – é o grande vilão da história. Mas a diferença dos países europeus com o Brasil é a existência de políticas públicas efetivas. No caso da França, desde de 1981 existe a Lei Lang, a Lei do Preço Único. O que é isso? A fixação do preço do livro é uma prática histórica e universal que vale até para o Brasil: um teto de preço é estabelecido pela editora que o livreiro não pode ultrapassar. Assim as margens são preestabelecidas. A lei francesa de 1981 introduziu mais uma restrição legal: o desconto não pode ultrapassar 5%. O objetivo foi atingindo e mantido até hoje: uma rede de livrarias – pequenas, médias, grandes – permanece distribuída em todo o território francês, dentro do espírito da Unesco que recomenda uma livraria para cada dez mil habitantes. Na França, as grandes distribuidoras e as novas plataformas virtuais são submetidas à mesma lei. Assim a diferença de preços entre as poderosas varejistas e as livrarias de bairro é muito pequena. Trata-se de uma política pública de cultura que, somada com outras medidas – tipo isenção de IPTU –, permite a manutenção das pequenas livrarias de bairro.

"As plataformas da net queimam o livro para atrair o consumidor para a compra de outros produtos; o livro virou a isca da internet".

Aqui no Brasil, estamos longe de um quadro de concorrência saudável, mas simplesmente de dumping generalizado. As plataformas da net queimam o livro para atrair o consumidor para a compra de outros produtos; o livro virou a isca da internet. Você soma assim: baixo nível educativo e de leitura, falta de políticas públicas mais efetivas – depois de 20 anos de luta, pois muitos profissionais do livro não foram  convencidos sobre os benefícios para achar a lei muito protecionista demais em nome do liberalismo econômico, a lei brasileira do preço único, que tinha acabado de passar na comissão dos deputados, foi engavetada por causa do impeachment de 2016 –, crise política e econômica do país, gestão equivocada – no caso da Saraiva, entrou na bolsa de valores e ficou pressionada para agradar aos acionistas –, um preço do livro que baixou em termos reais, enquanto a inflação atinge uma média de 10% ao ano, explosão do preço dos aluguéis, investimentos tecnológicos de alto valor… você terá assim uma ideia da amplitude da crise. A perspectiva é muito obscura!

Você pode deixar uma mensagem para convencer as pessoas a presentear com livros? 
O livro é a experiência da alteridade sem sair do sofá. É a condição do conhecimento, da elaboração do pensamento e a escola da tolerância para se colocar no lugar do outro. Entre numa livraria; ainda é um lugar muito seguro: livro não morde! 

* Mauro Sérgio Figueira é mestre em Relações Internacionais pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e doutorando em Ciência Política pela UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas.

LEIA TAMBÉM

Comentários estão fechados.