Consenso estreito

O conjunto de evidências e a justa coerência nos escritos de Pupo-Walquer, fizeram-me contatá-lo, de modos a abraçar essa aliança a favor de Cabeza de Vaca

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O conjunto de evidências e a justa coerência nos escritos de Pupo-Walquer, fizeram-me contatá-lo, de modos a abraçar essa aliança a favor de Cabeza de Vaca 

Rogério Romano Bonato 

O maior dentre os pecados sobre a manutenção da nossa história é o descaso. Cometem-se erros de todos os gêneros, desde a falta de atenção para com as fontes documentais, até incoerências, que lamentavelmente assumem a forma da verdade com o passar dos anos. 

Tenho alguns exemplos: Alvar Nuñes Cabeza de Vaca nunca relatou haver batizado as Cataratas do Iguaçu como Saltos de Santa Maria. Se não o fez em seus diários de bordo, mais precisamente na obra “Commentarios”, relatada por Pero Hernandez, dificilmente documentaria o feito de uma outra maneira. 
A desinformação provoca graves anomalias e pode-se constatar isso, ao acessar os sites oficiais, não apenas do município, como os do governo do Estado do Paraná, onde atribuem frases ao desbravador, que nunca foram formalmente relatadas. História é isso, é fonte documental. 

O maior trabalho já escrito sobre a vida e obra de Cabeza de Vaca, foi o elaborado por Enrique Pupo-Walquer, diretor del Centro de Estudios Latinoamericanos e Ibéricos de la Universidad de Vanderbilt (EUA), ele escreveu La vocación literaria del pensamiento histórico en América e também a célebre Historia, creación y profecia en los textos del Inca Garcilaso de la Vega. 

Foi ele quem fez brotar à luz pública, o volume Los Naufrágios, de Alvar. O autor me foi apresentado pelo livreiro Claimar Erni Granzotto, que possui algumas preciosas edições originais, ao longo do tempo que ocupei para escrever Ara’puka, Conflitos e Labirintos do Paraíso. 

Quem foi Cabeza? – O conjunto de evidências e a justa coerência nos escritos de Pupo-Walquer, fizeram-me contatá-lo, de modos a abraçar essa aliança a favor de Cabeza de Vaca e levar mais a sério uma espécie de convenção de tratamento a seu respeito, por exemplo: Alvar Nuñes nunca foi “explorador” e seria uma heresia tratá-lo como “aventureiro”, mais ainda “conquistador”. 

Ele foi um homem a frente de seu tempo, para com os deveres humanitários, senso adquirido após oito anos na condição de escravo na América do Norte e que não foi simplesmente “enviado” por Carlos V, mas dispôs-se à árdua missão de quebrar o cerco de Assunção, onde estavam os cristãos, seus patrícios. 

A trajetória de Alvar, em terras sul americanas, põe-se para a história, mais a favor dos povos nativos, do que para o Império e, essa sorte devemos ao destino, que não nos trouxe figuras como Cortêz e Pizarro, impiedosos e truculentos. 

Coluna Prestes – Mais adiante, devemos igualmente corrigir, ou em tese, melhor delinear, os eventos decorrentes da Revolução de 24, que desencadearam as chamadas “colunas”. Foram tantos episódios e de atuação bélica tal, a flexibilizarem alguns equívocos; ao sufocar-se a rebelião, a coluna Prestes prosseguiu na chamada “guerra de movimento”, nas não há fontes que assegurem sua estada em Foz do Iguaçu. 

Luiz Carlos Prestes, acompanhado de um ajudante de ordens, esteve no povoado para o desmonte da frente revolucionária de operações e nada mais, de acordo com a posição de vários historiadores, entre eles Romário Vidal. Neste caso precisamente, eu recomendo a leitura da melhor obra contemporânea sobre a colonização, que é Obrageros, Mensus e Colonos, assinada pelo professor Ruy Christovam Wachowicz. 

Desanuviar esse muro de incertezas tem sido a obstinação de várias pessoas, eu mesmo resolvi escrever um livro na tentativa de provocar discussões, pois corrigir as deformações, em nada prejudicará a imagem de Cabeza de Vaca, Prestes e outros personagens da nossa história, que muitos, acreditem, julgavam vaga e de verossímeis vagos. 

Argumento que precisamos desvendar essa escuridão de 250 anos, lacuna entre os primórdios da colonização e períodos que antecedem a guerra do Paraguai e fixar detalhadamente os períodos modernos. Denota-se que a região de Foz do Iguaçu tenha se mostrado apenas como rota de bandeiras, destruidoras dos povos das missiones, esconderijo de escravos e desertores, mais adiante, paraíso da exploração clandestina da erva-mate, madeira; nos anos 60 abrigo de nazistas e nos dias de hoje, filial da Al Qaeda. 

Poucos obedecem a ótica, de que a região foi durante séculos um paraíso perdido, fonte de toda a vida, assim reconhecido pelas tribos nômades que a protegiam, vilipendiada diante de suas riquezas e hoje o entroncamento das culturas latinas. Num repentino salto de 500 anos, ainda nos deparamos com a cruel dúvida; se estamos de costas para o Brasil, ou o Brasil ainda não nos entendeu? 

Creio que as próximas gerações decifrarão a parábola. 

Tombamento – Cabe-me relatar a preocupação com o sentido da existência e a manutenção das raízes da sociedade e venho lutando a favor disso desde que coloquei os pés na região. Me lembro como fossem minutos antes, eu e o Zé Beto Maciel documentando edifícios antigos, muitos hoje inexistentes. Um trabalho voluntário, encarado com narizes tortos pela maioria. 

Hoje, nosso arquivo fotográfico revela a insensatez do literal tombamento, mais pelo desenvolvimento e ganância no setor da construção civil, época em que o valor do metro quadrado equiparava-se ao de Ipanema, do que pela razão histórica de nossos edifícios. Aí observa-se a ausência da política cultural, que não fez força no sentido de proteção de tais monumentos e se eles fossem mantidos, a exemplo de alguns raros, hoje estariam abandonados ou caindo aos pedaços. 

O modo com que se utilizou a modernidade, ou o que se fez em nome dela, não justifica o desprezo com a história, pois também fomos alvos de aventureiros ou pior, que ganharam apoio oficial displicentemente. Lembro-me de um tal Saulo Brasil, que surgiu para confecção de uma revista chamada Memória de Foz, que reuniu centenas, quiçá um milhar de fotografias das famílias pioneiras e desapareceu com o material. O suplemento nos surgiu sofrível e nada além disso. 

Não vamos longe, nos dias de hoje um grupo de empresários propõe a efetivação de uma rua temática, a Santos Dumont, uma iniciativa plausível, que não esconde o cunho comercial, no entanto, não conseguiríamos voluntários para recuperar o único trecho original da Estrada Velha das Cataratas, por onde passou o pai da aviação e outros vultos e que se confunde com a história da cidade. 

Foz precisa discutir a memória, história e as suas raízes, com força de um projeto profissional, com verbas para a pesquisa e metodologia eficiente, que não estacione ou mude de rumo, cada vez que se substitua o presidente de uma Fundação Cultural. A cidade precisa de um conselho deliberativo para o segmento, que encontre formas, seja por força de orçamento ou leis de incentivo, para a contratação de historiadores, arqueólogos, museólogos e gente que descubra os vestígios que o tempo vai apagando. 

Um outro exemplo mais próximo: Dezenas de estudantes, advogados e por alguma razão interessados, procuram quase que diariamente os arquivos do jornal A Gazeta do Iguaçu. Lá atendemos aos pedidos por força de compromisso com a informação, mas o arquivo que é mantido pela empresa jornalística não é público. Lembro-me que quando iniciamos o jornal, cedemos duas cortesias de assinatura para a Fundação Cultural e faz pouco tempo, surpreendi-me com a informação, que o arquivo foi, anos atrás, entregue para um coletor de papéis velhos. O mesmo pode haver ocorrido com outros jornais, prospectos, revistas e informativos. 

As correções que procuramos fazer, são ínfimas diante da riqueza de nossa história e isso poderá se tornar um forte elemento para fortalecer o turismo, já que é ele a atividade que gera mais divisas. Precisamos encubar a necessidade de uma redescoberta do nosso passado e fazer disso um legado. 

Hoje, nosso arquivo fotográfico revela a insensatez do literal tombamento, mais pelo desenvolvimento e ganância no setor da construção civil. Desanuviar esse muro de incertezas tem sido a obstinação de várias pessoas, eu mesmo resolvi escrever um livro na tentativa de provocar discussões. 

Rogério Bonato é jornalista, publicitário e escritor. Fundou os jornais Diário da Cidade, Primeirahora e Gazeta do Iguaçu, matutino que dirige atualmente, além de escrever para jornais de grande circulação, como O Pasquim. Seu primeiro livro Ara’puka vendeu 8 mil exemplares no circuito nacional e foi lançado na Bienal Internacional do Livro(RJ). O segundo título do autor, Encontro de Terroristas, será apresentado ainda este ano. 

Fonte: Revista Cabeza, edição nº 12, julho de 2003

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