Por Claudio Siqueira
Duas notícias se cruzam: a ameaça de despejo do quilombo Horta do Seu Zé e Dona Laíde e o ato de solidariedade ao povo palestino. Parecem distantes e tratam da mesma ferida: o direito de existir e permanecer.
O quilombo, localizado na Vila C, foi reconhecido pela Fundação Cultural Palmares em 2024 como território remanescente e aguarda regularização pelo INCRA, que já instaurou processo administrativo e propôs uma solução técnica: a recategorização da área como Reserva de Desenvolvimento Sustentável, forma prevista em lei que permite conciliar vida comunitária e preservação ambiental. É um caminho de legalidade, diálogo e ciência. Mesmo assim, a prefeitura — hoje de orientação conservadora — insiste na reintegração de posse, ignorando mediações, estudos da UNILA e acordos anteriores.
Isso faz parte de um projeto “civilizatório” em conflito. Apagar um quilombo é repetir, em outra escala e sob outra linguagem, a lógica colonial que por séculos tentou silenciar povos negros e tradicionais. O nome técnico é reintegração; o efeito real é etnocídio, uma destruição cultural travestida de ato administrativo. A diferença é que agora há Constituição, convenções internacionais e sociedade civil para dizer não.
Enquanto isso, nesta nossa mesma cidade e fronteira, outro povo luta por não ser apagado: o palestino. O ato de solidariedade organizado na Praça da Paz reafirma uma verdade reconhecida pela Corte Internacional de Justiça — o que acontece em Gaza é genocídio. Um extermínio sistemático de civis, crianças e famílias. O paralelo entre Gaza e o quilombo pode parecer desproporcional, mas o princípio é o mesmo: quando o poder nega a um povo o direito de habitar sua terra, repete-se a velha pedagogia da violência.
A paz verdadeira não é ausência de conflito, mas presença de justiça. E justiça, nesses casos, significa permanência — o direito de continuar existindo onde a história nos plantou. Foz do Iguaçu, com sua geografia de fronteiras e cruzamentos, é um espelho do mundo: nela cabem o território quilombola ameaçado e o povo palestino sitiado. Ambos denunciam a mesma estrutura que tenta administrar a vida como posse e o território como mercadoria.
Cuidar da terra, do corpo e da memória é um ato político. Reconhecer o valor das comunidades que produzem cultura e sustentam o comum é trabalhar para o futuro coletivo, para o bem comum real. O mesmo princípio deveria valer para o território — não “ceder” espaço, mas garantir dignidade.
Não é uma escolha difícil decidir entre a pressa do despejo e o tempo do diálogo. Entre o expediente burocrático (e promíscuo) e o exercício da justiça.
A cidade que se quer moderna precisa, antes de tudo, ser capaz de lembrar. Porque não há futuro possível onde a memória é tratada como obstáculo e o esquecimento, como projeto.