Por Claudio Siqueira
O Dia de Todos os Santos e Santas, celebrado em 1º de novembro, é um marco de origem e continuidade. A data foi criada no século VIII pela cristandade para lembrar todos os que viveram com fé e justiça, mesmo sem nome reconhecido pela Igreja oficial de então.
No Brasil, essa lembrança se misturou às festas populares, às ladainhas e às promessas de beira de estrada. A santidade, aqui, não mora nos altares de mármore, mora nas cozinhas das benzedeiras, nas feiras de artesãos e agricultores, nos terreiros e nos quintais. É plural, feita de barro, fogo e cinzas.
Essas celebrações formaram uma infraestrutura invisível da cultura brasileira — o modo como o país aprendeu a lidar com o sagrado. Não pela teologia (apenas), mas pela convivência, vivências, projeções e identificações. O povo brasileiro não separa fé e festa: canta o que crê, dança o que movimenta ossos e carne. A religião se faz prática cotidiana na comunidade.
Em seguida vem o Dia de Todos os Mortos, o Dia dos Santos Finados/Defuntos (falecidos), ou simplesmente Dia de Finados. Essa lembrança dos que partiram é mais antiga que o cristianismo. Povos antigos já reservavam um tempo para cuidar da memória dos seus defuntos, antes mesmo de Roma oficializar o costume. Quando a Igreja Romana o incorporou ao calendário, deu-lhe forma litúrgica e silêncio de mistério. Mas na América Latina a coisa transformou-se em encontro. No México, o Día de los Muertos é um grande retorno — velas, flores e comida para que os que já se foram encontrem o caminho de casa. No Brasil, o mesmo gesto resiste em outro tom: mais contido, mas igualmente terno. A vela acesa no muro do cemitério, a flor deixada no portão, o nome sussurrado na prece, a reverência à Cruz Mestra.
Nota contextual: a celebração pré-hispânica que deu origem ao atual Dia dos Mortos no México não tinha uma data fixa como hoje, mas ocorria durante o nono mês do calendário asteca, por volta do início de agosto, e durava um mês inteiro. Essas celebrações foram movidas e mescladas com as festas católicas do Dia de Todos os Santos (1 de novembro) e Dia de Finados (2 de novembro) para coincidir com o calendário cristão e facilitar a conversão dos povos nativos.
Enquanto isso, no Norte global, a mesma época do ano se converteu em outra coisa. O Halloween, nascido da fusão entre o All Hallows’ Eve (véspera do Dia de Todos os Santos) e ritos agrícolas europeus, acabou se tornando uma festa do medo. Fantasiar-se de monstro seria um modo de enganar os espíritos — não de convidá-los como fazem os latinos — para que esses não amaldiçoem os vivos. O disfarce é para proteção. O medo é transformado em passatempo. O Halloween é uma recombinação moderna de rituais antigos e interpretações cristãs posteriores. O nome vem de All Hallows’ Eve — a véspera do Dia de Todos os Santos, criado no século VIII para celebrar todos os fiéis que viveram em santidade, mesmo sem canonização formal. Essa data foi sobreposta a antigas festas de colheita na Europa, principalmente na região celta, onde se celebrava o fim do verão e o início do inverno.
Com o tempo, os cronistas cristãos reinterpretaram esses ritos pagãos à luz da teologia. A partir daí, nasceu a ideia popular de que o Halloween derivaria do Samhain celta. Mas os registros históricos sobre o Samhain são escassos e tardios — a maioria das descrições conhecidas vem de textos cristãos que reinterpretaram o passado. O Halloween moderno, portanto, não é herdeiro direto do Samhain, mas uma paganização tardia da celebração cristã.
A simbologia também se transformou. Nos países do Norte, especialmente nos Estados Unidos, a festa assumiu um sentido defensivo: fantasiar-se de morto ou de monstro seria uma forma de enganar os espíritos, para que não reconhecessem os vivos e, assim, não lhes causasse dano. É um ritual de disfarce — o medo travestido de brincadeira.
Pelo viés da cultura pop estrangeira, essa celebração abarcou no Brasil sendo comercializada como um carnaval gringo e excêntrico que inclui crianças em sua mecânica. Há resistência no Brasil, de um lado, daqueles que sentem-se ameaçados por essa imposição cultural neocolonial, e de outro lado daqueles que vêem seus sistemas de fé (evangélicos e católicos) afrontados e desafiados simbolicamente.
No Brasil, esse mesmo dia, frente à invasão cultural neocolonial, ganhou outra resposta. Em 2003, o Dia do Saci foi instituído por lei para lembrar que o imaginário também é território. O Saci nasce do encontro entre culturas indígenas e africanas. É símbolo da esperteza, da resistência e da crítica travessa ao poder. Sua celebração é uma defesa da memória viva — a recusa de deixar que o Brasil se apague sob fantasias importadas.
Quando falamos de Norte e Sul Global, neste contexto daqui deste texto, estamos nos referindo, de forma simplificada, à polarização histórica e cultural (mais que a geográfica) entre as culturas anglo-saxãs protestantes modernas (secularização da morte) e as culturas católicas mediterrâneas e latino-americanas (ritualização da continuidade), com suas variações internas em ambos os blocos.
Nas Américas do Sul, o gesto tem outra direção. As festas de mortos e as romarias de Finados não afastam, mas convidam. Ao se vestir de morto, o corpo não busca enganar os espíritos, e sim acolhê-los. O disfarce é sinal de comunhão, não de fuga. No Día de los Muertos, no México, os altares caseiros se tornam lugares de encontro entre vivos e ancestrais. No Brasil, o Dia de Todos os Santos (1º de novembro) e o Dia de Finados (2 de novembro) mantêm esse elo entre fé e lembrança: a morte não é ausência, é continuidade.
Essa diferença revela duas cosmologias: no Norte, o além é ameaça; no Sul, é convivência.
No primeiro, o disfarce protege; no segundo, o disfarce celebra.
Um tenta enganar a morte; o outro, conversar com ela.
Há ainda uma lembrança quase esquecida: o Dia da Bruxa. Antes de virar lenda, foi uma invenção da Contra-Reforma (em contexto popular e criativo). Chamava-se de “dia da bruxa” o 31 de outubro — o mesmo em que Martinho Lutero iniciou (simbolicamente) a Reforma Protestante, em 1517. A palavra “bruxa” designava, ali, quem pensava fora da doutrina. Com o tempo, a ofensa virou símbolo. Da mulher perseguida nasceu o arquétipo da mulher sábia.
Essas datas — dos santos, dos mortos, dos encantados — formam o ciclo mais humano do calendário. São dias de lembrar o que nos sustenta: a continuidade entre o visível e o invisível.
No Norte, o disfarce protege.
No Sul, o disfarce acolhe.
Um teme os mortos.
O outro, conversa com eles.
No fundo, todas essas datas giram em torno do mesmo eixo — o direito de lembrar.
São duas pedagogias do invisível: o medo e o abraço.
O Brasil está entre esses dois mundos. Aprende com o medo, mas prefere o abraço.
Porque aqui, até o luto tem cor, e até a morte tem voz.

