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Café Filosófico

Adumbração

Professor Caverna convida Marcos Gabriel Tragueta

10 min de leitura
Adumbração
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Por Marcos Gabriel Tragueta

  1. Adumbração.

É sempre intrigante retornar ao ponto mais básico da experiência: o ato de perceber. Antes de qualquer pensamento, antes de qualquer crença, antes de qualquer ideologia, há esse modo silencioso pelo qual o mundo se anuncia. A percepção, tão cotidiana, é também o primeiro estranhamento. O conhecimento nos mostra que ela não é uma abertura transparente, mas um campo vibrante de aparências parciais, perfis que se oferecem e se retiram, como se cada objeto fosse uma promessa que jamais cumpre inteiramente.

A fenomenologia nomeia esse fenômeno, essa incompletude essencial, de adumbração. O mundo não nos chega inteiro, mas em camadas, contornos, franjas luminosas que sugerem mais do que mostram. E todo o resto, as ideias, crenças, culturas, ideologias, nasce dessa primeira meia-luz.

Mas para alcançar essa compreensão, talvez seja preciso começar pelo chão, literalmente, pela pele, pela química, pelos fótons, pelas vibrações elementares do real. Pois é no encontro entre corpo e mundo que o pensamento se origina.

  1. O corpo como primeira clareira

Popularmente, dizem que somos seres de cinco sentidos. Um número pobre, uma classificação confortável demais para o que realmente acontece. Antes de nomeá-los, convém lembrar o óbvio: perceber é ser afetado. O mundo toca, pressiona, empurra, vibra, dobra, tensiona. O corpo responde com sentido.

  • O toque como primeiro horizonte

Tato. É o gesto inaugural da consciência. A mão contra a pedra, o pé contra a terra, a água sobre a pele, tudo isso são encontros que não acontecem como se pensa. Nunca tocamos o mundo diretamente; tocamos campos, resistências, distâncias microscópicas sustentadas por elétrons que se repelem como pequenos guardiões do espaço.

No entanto, a consciência não sabe disso. Ela recebe apenas a tradução: pressão, textura, temperatura, dor, prazer.

Trata-se de uma síntese passiva e primordial, um modo de sermos afetados que é prévio a qualquer pensamento discursivo. É a camada fundante onde o sentido se tece, antes que a palavra o nomeie.

E é também, e sobretudo, o primeiro sinal de que já estamos lançados e entregues ao mundo, muito antes de qualquer decisão ou escolha. Uma facticidade sensorial que nos constitui: estamos em diálogo tátil com o real antes mesmo de sabermos que estamos em diálogo.

Um toque não é uma informação; é um acontecimento. Um modo de existir. Uma dobra do mundo sobre o corpo e do corpo sobre o mundo. Cada sensação tátil é um horizonte: revela um perfil do objeto, oculta infinitos outros.

E aqui está a primeira adumbração: tocar é sempre tocar apenas um lado.

O resto permanece nas sombras.

  1. O mundo químico dos sabores e aromas

Do tato, passamos ao paladar e ao olfato, sentidos tão íntimos que chegam a ser intrusivos. Aqui, o mundo literalmente entra em nós: moléculas que se dissolvem, se encaixam, se ligam, se transformam.

Paladar. Cada sabor é uma pequena coreografia química. Um ácido que abre canais, um açúcar que se encaixa em receptores específicos, um umami que desperta cascatas bioelétricas. Mas o sabor não está no alimento; está na síntese da consciência.

O objeto apenas envia moléculas, enquanto o paladar tece sentido a partir delas. Poderíamos pensar nisso como uma economia vital da atenção: o organismo vivo não registra tudo, mas sim aquilo que lhe importa, o que é útil, nocivo ou nutritivo. O sabor percebido é, portanto, menos uma propriedade do mundo e mais um recorte funcional feito pela vida, uma tradução química em linguagem do corpo. Percebemos não a matéria em si, mas o seu significado para nossa existência.

Olfato. É um sentido fenomenologicamente fascinante. Moléculas errantes, quase fantasmas, alcançam o epitélio e ali produzem pequenas epifanias: memórias, atmosferas, afetos. Os aromas são as casas antigas onde o espírito habita sem saber.

O cheiro, assim como o toque, também é adumbrado: sentimos apenas o que nossos receptores reconhecem. Todo o restante, todo um universo de odores possíveis, permanece fora da nossa abertura perceptiva, como mundos que nos cercam, mas jamais nos alcançam.

  1. O mundo vibratório: física e fenômeno

Se avançamos da química para as ondas, entramos em um campo ainda mais abstrato. Tudo vibra: a matéria, a energia, a luz, até mesmo a própria equação de Schrödinger, que descreve partículas como probabilidades ondulantes.

Audição. O som é movimento do mundo que se torna sentido. Ondas de pressão atravessam o ar, tocam o tímpano, acordam ossículos minúsculos, serpenteiam pela cóclea. Mas para o fenômeno, para a aparição em si, pouco importa o mecanismo.

O que importa é a tradução: o mundo que se faz música, ruído, ritmo, palavra.

Escutar é um modo de estar-à-escuta do próprio ser, um modo de deixar o mundo dizer-se para nós.

Mas sempre há sombras. Escutamos apenas um fragmento do espectro possível. A audição é também uma adumbração: um filtro que cria mundos sonoros particulares.

Visão. Dentre todas as modalidades, é talvez a mais enganosa. Parece oferecer a clareza, mas opera exatamente ao contrário: revela por esconder. Toda luz visível é apenas uma fatia mínima do espectro. Ver é sempre habitar uma miséria luminosa que tomamos por plenitude.

Um fóton parte do Sol, cruza o vazio do cosmos, encontra uma folha. A clorofila absorve alguns comprimentos de onda e rejeita outros. O verde que vemos não é o verde da folha: é a luz que ela não pôde absorver.

E depois disso, o fóton ainda precisa atravessar córnea, cristalino, humor vítreo, e finalmente atingir os cones, onde se torna impulso elétrico, e só então, e apenas então, fenômeno.

Ver, não é receber luz, é constituir uma aparição a partir de perfis alcançados pela luz.

A folha nunca se revela inteira.

Ela apenas se anuncia.

E aqui chegamos ao coração da fenomenologia.

  1. Fenomenologia da aparição: adumbração

Adumbração (Abschattung) é o conceito-chave. Nenhum objeto mostra todos os seus lados simultaneamente. A consciência nunca apreende o objeto como totalidade, apenas partes, perspectivas, recortes.

Isso não é um defeito da percepção; é a sua estrutura essencial.

Perfis. A percepção pode ser interpretada como uma sucessão infinita de perfis: frentes, fundos, ângulos, texturas, brilhos, sombras, distâncias.

Síntese. A consciência, então, realiza uma síntese de identidade: reconhece que todos esses perfis pertencem a um mesmo objeto, mesmo sem jamais vê-lo completo.

O objeto não é necessariamente, um conjunto de aspectos, mas um campo de presença, uma promessa de aparições futuras. Cada perfil carrega um horizonte, aquilo que não vejo, mas poderia ver se me movesse.

A aparição não é do objeto, é do ser-em-comum entre homem e mundo. Ver não é representar, é participar da abertura do real.

Em todos os casos, permanece a mesma questão: perceber é sempre ver menos do que há.

  1. Do sensorial ao conceitual: a adumbração do pensamento

O que ocorre com os sentidos ocorre com as ideias. A mesma estrutura fenomenológica que limita a percepção limita a interpretação. O fenômeno nunca entrega o objeto totalmente; o pensamento nunca entrega o sentido de forma integral.

Se vejo perfis, penso perfis.

Se percebo fragmentos, interpreto fragmentos.

Se o mundo se mostra em adumbrações, a mente pensa em adumbrações.

  1. A gênese das ilusões pessoais

Daí nascem os vieses cognitivos:

o viés de confirmação;

a seletividade interpretativa;

a crença na própria clareza.

A mente, assim como os olhos, acredita possuir a visão completa, quando na verdade está apenas alinhando sombras que lhe parecem suficientes.

Perceber, interpretar e pensar são modos de recortar o fluxo do real. Criamos utilidades, não espelhos. Construímos relevâncias, não essências.

  1. A adumbração coletiva: mito, cultura, ideologia

O que acontece em um indivíduo acontece em uma civilização inteira. Cada sociedade desenvolve seus esquemas perceptivos coletivos, seus filtros simbólicos, seus sistemas de significação, suas luzes e suas sombras.

Nenhuma cosmovisão absorve todos os comprimentos de onda do real. Cada cultura, como uma folha iluminada, devolve ao mundo apenas aquilo que seu sistema simbólico pode refletir.

Religiões, ideologias políticas, mitos, teorias filosóficas, todas são estruturas de adumbração. Não porque enganem, mas porque toda visão é parcial.

Esta clareira, ou abertura que ilumina e esconde ao mesmo tempo, cria luz e sombras. Toda interpretação cria cegueiras.

Assim, toda cultura pode ser vista como um estilo perceptivo.

Se o corpo percebe por perfis, se a mente interpreta por recortes, se a cultura ilumina por filtros, então o humano é, por essência, um ser de adumbrações. Não vivemos na luz plena, nem na escuridão completa; vivemos na penumbra interpretativa que faz emergir mundo e sentido.

A fenomenologia não vê isso como falha, mas como possibilidade: a incompletude permite movimento, abertura, desejo, conhecimento, criação. O fato de o mundo nunca entregar a totalidade é justamente o que nos permite buscá-lo.

Somos o ente para quem o ser importa.

E o ser, justamente por nunca se mostrar por inteiro, convoca-nos sempre ao desvelamento.

Entre fótons e dogmas, entre moléculas e mitos, entre canais iônicos e interpretações históricas, habitamos uma zona intermediária: um claro-escuro onde o mundo se revela ao mesmo tempo em que se oculta.

Perceber é ser atingido por um fragmento da realidade e, ao mesmo tempo, completá-lo com a imaginação.

Pensar é iluminar um pedaço do ser e obrigatoriamente deixar outro na sombra.

Viver é interpretar o real através das frestas pelas quais ele aceita nos alcançar.

No fim, talvez tudo se resuma a isso: existir é caminhar entre sombras luminosas.

É navegar em adumbrações sucessivas, do toque ao pensamento, do átomo à cultura, tentando, na medida do possível, compreender que a verdade não é um brilho isolado, mas a dança entre aquilo que o mundo revela e aquilo que somos capazes de iluminar.

Convite Especial: Café Filosófico


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Contaremos com um ambiente descontraído e um delicioso café para tornar este momento ainda mais especial!
Venha viver essa experiência enriquecedora conosco! Sua presença fará toda a diferença.
Esperamos por você!

Ingressos para o V Café Filosófico:

https://cafefilosoficoo.lojavirtualnuvem.com.br/produtos/1-lote-ingressos

Comunidade do “Café Filosófico” no WHATSAPP:

https://chat.whatsapp.com/Ewehn3zxEBr6U0z96uZllP

Obs. Caro leitor, o objetivo aqui é estimular a sua reflexão filosófica, nada mais! mais nada!

E aí, curtiu a ideia geral? Deixe seu comentário logo abaixo.

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    Professor Caverna

    Caverna é professor de Filosofia, criador de conteúdo digital e coordenador do projeto “Café Filosófico” em Foz do Iguaçu.