Por Liz Basso A. Oliveira
Publicado originalmente em 2015 pela editora Eterna Cadencia, Vivir Entre Lenguas de Sylvia Molloy é uma série de ensaios sobre as relações entre identidade e idioma. Além de contar sobre outros escritores bilíngues, narra as memórias de sua própria experiência com o trilinguísmo: o espanhol assume o lugar da língua materna, o inglês é ensinado por seu pai a partir dos três anos de idade e o francês chega não muito mais tarde, quando decide recuperar a língua perdida por sua mãe. A fim de pensar sobre as relações entre identidade e idioma, a escritora argentina direciona o livro para a interrogativa que o finaliza: “¿en qué lengua soy?” (Molloy, 2015, p. 76), de forma que mantém a questão sem uma resposta.

O espanhol, língua em que Molloy escreve o livro e que, assim como o português, diferencia os verbos “ser” e “estar”, ao ser utilizado para pensar em que língua se “é” faz predominar uma definição da identidade associada à imobilidade, enquanto que, se substituído por estoy, a questão seria completamente modificada, abarcando o aspecto móvel da identidade. Sendo assim, o conceito utilizado para formular a questão refere-se à aspiração nascida com a modernidade. Trata-se de um indivíduo que já não nasce permanentemente alicerçado ao grupo social ao qual pertence, o qual passa a entender a si como uma criação autônoma, que pode deslocar-se por entre espaços e papeis sociais independentemente daqueles em seu entorno.
Em A espécie que sabe (2019), Viviane Mosé explica que esta configuração de sujeito surge de uma necessidade longínqua do ser humano: a segurança. A partir das inúmeras tentativas de dominar a natureza em si, o ser humano encontra no pensamento de Descartes um lugar seguro, sem grandes flutuações. O famigerado “Penso, logo existo” coloca o ser individual como uma unidade, fonte única de estabilidade, já que o sujeito racional pode duvidar de absolutamente tudo, menos da existência de seu próprio pensamento. Nesta lógica, o pensamento apresenta-se como o ponto fixo que ele tanto procurava, o qual pode existir graças a alguém que pensa.
O “eu” transforma-se então no ponto fixo. Assim, o indivíduo moderno começa a se desenvolver a partir da crença de que a sua identidade é formada de dentro para fora e não o contrário. Eis a primeira fronteira simbólica que configura a conjuntura em que até hoje nos encontramos: /eu/outro/. Instaura-se a ilusão de que a cultura, a história e a sociedade não estão engendradas a subjetividade dos seres. A identidade adquire contornos aparentemente impenetráveis. Simultaneamente a esta nova configuração da subjetividade, surge a identidade nacional. Em O que é o identitarismo? (2024), Douglas Barros aponta que, para ambas, a diferenciação identitária foi essencial. “Eu” preciso me diferenciar do “outro”, tanto quanto “nós” precisamos nos diferenciar dos estrangeiros para assegurarmos nossas autodefinições. Aqueles com quem o indivíduo ou o povo não se identifica passam a representar perigo e, portanto, devem ser afastados, excluídos e, por vezes, eliminados.
Para pensar sobre a relação deste indivíduo com a língua, Molloy também conta o posicionamento de outros escritores quanto ao bilinguismo. A intenção de fechar sua identidade, fez com que Jules Supervielle optasse por utilizar apenas uma das línguas que dominava: “Fechar deliberadamente minhas portas secretas para o espanhol, aquelas que se abrem para o pensamento, a expressão e, digamos, a alma” (2015, p. 51, tradução minha). O escritor uruguaio não apenas evita falar espanhol, mas também proíbe que sua esposa fale outro idioma senão o francês.
A ideia associa-se às identidades nacionais, para a qual o objeto livro foi essencial. Sem que o mercado editorial fosse desenvolvido e a alfabetização democratizada, dificilmente a construção simbólica de uma nação teria sido difundida como foi. A nação encontra no livro o veículo para fixar a língua administrativa que organiza toda a simbologia de sua identidade, criando assim um imaginário unificador entre os sujeitos de um mesmo território. A unificação de um idioma por todo o território nacional foi uma das primeiras fronteiras simbólicas forjadas entre as nações. A partir de então, o idioma marca a outridade ou o pertencimento à determinada nação: “Cada idioma tiene su territorio, su hora, su jerarquía” (Molloy, 2015, p. 18).
Falar um idioma significa pertencer a todo um campo simbólico por meio do qual se diferencia dos indivíduos de outros territórios. Sendo assim, a omissão da língua materna e o acolhimento da língua francesa por Supervielle relacionam-se com a possibilidade de inventar a si, se baseando nas hierarquias produzidas pelas construções simbólicas linguísticas de um país até então dominante. Ao se inventar em francês, o escritor uruguaio intenta aproximar-se de uma comunidade imaginada de maior prestígio do que a que realmente pertencia.
Outro exemplo provocativo narrado em Vivir Entre Lenguas (2015) é o de William Henry Hudson. Ele nasce e vive na Argentina durante trinta e três anos, mas é criado em inglês pelos pais norte-americanos, de maneira que falava espanhol apenas em ambientes não familiares. Molloy conta que a partir de sua mudança para a Inglaterra, Hudson transforma-se em escritor e passa a se referir aos argentinos como “nativos” e aos indígenas como “selvagens”, termos depreciativos que impõe entre ele e os seus conterrâneos uma fronteira imaginária.
Barros (2024) explica que as fronteiras nacionais se construíram por meio da consolidação do entendimento do outro como um potencial destruidor de uma suposta harmonia nacional, resultando em xenofobia e superioridade racial. A linha imaginária, que cria o estrangeiro, omite as trocas simbólicas que ocorrem entre um lado e outro. Conforme o sociólogo, José M. Valenzuela Arce, a fim de ultrapassar tais classificações limitantes, desdobram-se conceitos como “transfronteiras”. Ao contrário de excluir, limitar e omitir como faz a fronteira, a transfronteira reconhece as mudanças, os desdobramentos e as criações que surgem a partir das relações que se dão entre as partes.
Mas “A veces se es de un allá prestigioso […]”, escreve Molloy. (2015, p. 61). Mesmo que Hudson utilize tais termos para se referir aos argentinos, a escritora aponta que seus livros eram leituras obrigatórias nas escolas argentinas durante sua infância. O que quase ninguém sabia era que Hudson não se identificava como argentino e não escrevia em espanhol, já que nas edições argentinas de seus livros o tradutor era ocultado e o seu próprio nome era “argentinizado”. Transformado em Guillermo Enrique, tentava-se incorporar o prestigiado autor europeu à identidade imaginada do país latino-americano.
Ao narrar sua própria experiência na fronteira dos Estados Unidos, Molloy admite ter se sentido ofendida quando questionada acerca de sua origem. Mesmo falando inglês desde os três anos, a pronúncia argentina a denuncia. O sotaque demonstra que o falante é um outro, assim, a vontade de ocultá-lo aponta para incorporação dos estigmas da comunidade imaginada a qual o sujeito entende que pertence. Mesmo que assimile parte de si em inglês, sua subjetividade incorpora a experiência coletiva do território subalternizado pela colonização. Disfarçar o sotaque ou escolher um idioma em detrimento de outro são ações evidentemente perpassadas por ideologias políticas, gostos e costumes, os quais, por sua vez, são indispensáveis para a elaboração da identidade imaginada dos sujeitos.
A experiência subjetiva narrada ao longo do livro de Molloy, ora indica certo apego a concepção de identidade cerrada em si, buscando encontrar uma língua que contorne seu “eu”, ora demonstra a flexibilidade incorporada por meio do plurilinguísmo, como é possível observar na seguinte passagem: “A troca de idioma é sem esforços: tem suas regras, mas eu, como falante, não as conheço: switcheo, não analiso”, (traduzida por alguém que não é tradutora, eu) originalmente: “The switching is effortless: tendrá sus reglas pero yo, como hablante, no las conozco: switcheo, no analizo” (Molloy, 2015, p. 19). Ao longo de todo o livro a escritora “switchea”, permuta, cambia, mescla as três línguas que domina. O próprio neologismo não impõe fronteira entre um e outro idioma. Sua identidade parece então definir-se pela indefinição, pelo movimento transfronteiriço.

A questão que finaliza o livro, “¿en qué lengua soy?” (Molloy, 2015, p. 76), se fundamenta na ilusão da estabilidade do Ser, mas, ao mesmo tempo, a escritora explicita a impossibilidade de uma resposta exata ao mantê-la em aberto. Sua identidade revela-se fruto das contínuas relações, encontros e desencontros que vive e que apenas se esgotam após a morte. Essas supostas contradições que encaramos em Vivir Entre Lenguas, são o que o ser humano vem tentando negar, tornando-se cada vez mais infeliz com sua limitação, mas que são a própria vida: o vir a ser, o devir o movimento, a mudança contínua.
Concluo com o poema Terra de Ninguém do lindíssimo livro Nossa Vingança é o Amor de Cristina Peri Rossi, que cai aqui como uma luva: Agora que todas as regiões/ querem ser nações/ eu busco a terra de ninguém/ um lugar sem nome/ que ninguém reclame/ um lugar de passagem/ transitório como a vida mesma/ sem pátria/ sem bandeiras/ sem fronteiras/ sem língua identitária/ mais que a língua poesia./ Território dos sonhos/ onde tudo está por começar/ onde tudo está por explorar.

Convite Especial: Café Filosófico
Reflexões para Pais e Filhos

Prezadas famílias!
Temos o prazer de convidá-los para o V Café Filosófico, um encontro especial onde pais e filhos poderão compartilhar um momento de reflexão e diálogo sobre os dilemas da vida.
Em um mundo repleto de desafios e mudanças constantes, criar espaços para conversas significativas fortalece os laços familiares e amplia nossa visão de mundo. Neste evento, vamos explorar juntos questões que nos fazem pensar, crescer e nos conectar de maneira mais profunda.
Por que participar?
✔ Fortaleça a relação com seu filho(a) por meio do diálogo
✔ Reflita sobre valores, escolhas e desafios da vida
✔ Compartilhe ideias em um ambiente acolhedor e inspirador
Data e local: Zeppelin
Contaremos com um ambiente descontraído e um delicioso café para tornar este momento ainda mais especial!
Venha viver essa experiência enriquecedora conosco! Sua presença fará toda a diferença.
Esperamos você e sua família!
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Ingressos para o V Café Filosófico:

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Comunidade do “Café Filosófico” no WHATSAPP:

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Obs. Caro leitor, o objetivo aqui é estimular a sua reflexão filosófica, nada mais! mais nada!
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