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Café Filosófico

Lei da Alternância

Professor Caverna convida Liz Basso A. Oliveira para explicar a impossibilidade do perene.

8 min de leitura
Lei da Alternância


Por Liz Basso A. Oliveira

Pelo menos desde que René Descartes separou o indivíduo do seu entorno, uma máquina simbólica que produz fronteiras não parou de trabalhar. Por meio do pensamento cartesiano, divisões se multiplicaram e deram luz à contradição. Sou isto, portanto não posso ser aquilo. Penso assim, então não posso pensar assado. Por isso, quando somos tomados por sensações e sentimentos opostos, a confusão aparece. Procuramos pela coerência que nos conforta quando estamos em inércia, mas logo que voltamos a caminhar somos afetados por tudo e todos que encontrarmos pelo percurso. Diante da desordem do cosmos social, nossa subjetividade é provocada a se reformular e, mais uma vez nos frustramos com a impossibilidade do perene.

Habituados a ordem cartesiana, tendemos a entendê-la como natural. Negligenciamos a sabedoria grega que através da fabulação conseguiu exprimir mais sobre a natureza humana, com seus deuses e heróis contraditórios e complexos, do que a filosofia ocidental jamais sonhou. Ignoramos a filosofia oriental que procura o equilíbrio na união dos pólos yin e yang, distintos, mas interdependentes. Em seu livro “Ioga”, publicado em 2023 pela Alfaguara, Emmanuel Carrère transcreve a fala de um mestre do tai chi com quem fez uma aula impressionante: “É bom que vocês tenham entendido que é preciso praticar a forma não apenas devagar, mas rápido. Agora, vocês devem entender que não basta praticar rápido e devagar. Tem que praticar rápido e devagar ao mesmo tempo”.

Para quem entende “rápido e devagar” como opostos pode ser complicadíssimo compreender como isso seria possível. Caso você, assim como eu, seja uma dessas pessoas, recomendo a leitura completa do livro de Carrère. Conforme impresso na capa logo acima da imagem do homem que se escora para fora de um círculo negro, como fazemos na beira de uma piscina quando decidimos sair, e logo abaixo do nome do autor, Karl Ove Knausgard acredita se tratar do “mais instigante escritor vivo”.

Dividido em cinco capítulos, o que era para ser um “livrinho simpático e perspicaz sobre a ioga” transforma-se em uma narrativa bastante provocativa e contemporânea. Em outras palavras, Emmanuel Carrère é também o narrador-protagonista, o que imprime ao texto um teor de realidade ainda mais vívido ao contar sobre o próprio processo de escrita do livro sobre o qual o leitor se debruça. Há um projeto, no entanto, a vida acontece e altera os planos e, assim, o que começa em um retiro de meditação em meio aos anos mais equilibrados de sua vida, se encaminha para o colapso de sua sanidade principalmente a partir do diagnóstico de bipolaridade e, depois de árduos anos, para uma estabilidade monótona, mas necessária para restituição de si e, por fim, para o capítulo de despedida no qual revela novos projetos e evidencia o jogo entre realidade e ficção que lemos.

Em “A história da minha loucura”, Carrère escreve: “O que posso dizer desse colapso de que falo? O que devo omitir? Tenho uma convicção, apenas uma, sobre a literatura, bom, sobre o tipo de literatura que eu faço: é o lugar onde não se mente. É o imperativo absoluto” (2023, p. 132). E aí, talvez você se pergunte: como ele pode ter brincado com a realidade e a ficção, mas ao mesmo tempo não mentir nunca? Por muito tempo entendemos a realidade como verdade e a ficção como mentira, uma a negação da outra, extremamente opostas. Mas o que vivemos cada vez que nos lembramos de algo (com a impressão de que a lembrança por vezes é falha e, em outras, certeira) se aproxima bem mais do que Wally Salomão chamou de “ilha de edição”, do que da verdade verdadeira. Sendo assim, o escritor trabalha com a ficção e com a realidade sempre. Consciente disso, o que Carrère faz é justamente expor sua libertação das amarras da verdade para trançar a realidade com a ficção.

No mundo literário não é novidade que a autoficção está em alta. Muitos escritores contemporâneos têm experimentado o estilo, mas como ainda temos dificuldade de perceber que uma coisa não exclui a outra, o gênero parece extremamente oportuno para abordar problemáticas atuais. Parece necessário afirmar e repetir a simultaneidade em um mundo formado de oposições excludentes. Realidade e ficção acontecem o tempo todo entrelaçadas e elas são apenas um dos muitos “opostos” emaranhados por Carrère ao longo de “Ioga”. Não me parece à toa, então, que o diagnóstico recebido pelo autor tenha o incomodado a ponto de dar início à crise psíquica que o coloca internado durante meses num hospital psiquiátrico. Ele que através da meditação buscara, durante três décadas de prática, estar confortável com as “contradições” intrínsecas ao ser humano, se vê diante do diagnóstico que o transporta para o precipício. A partir de então o equilíbrio perseguido parece desaparecer. Bipolar: a frente há apenas um ou outro extremo. A partir de então a própria escrita de Carrère causa estranhamento. Até o fim do capítulo parece que lemos outro narrador.

Entretanto, ele retorna de certa forma para a meditação e a narrativa volta a fluir. No quarto capítulo lemos então algo parecido com “Dias Perfeitos”. Como no filme dirigido por Wim Wenders, o protagonista vivencia um dia que se difere pouco do dia seguinte e ainda dos próximos. Há uma prolongada estabilidade que aos poucos o devolve a possibilidade de transitar por entre as polaridades. Diante do abismo nauseante, ele se reequilibra na constância que encontra na Grécia, distante de todos os amigos, familiares e conhecidos e, assim, sai do fundo do poço, vence a infelicidade esmagadora, o que não quer dizer que esteja feliz.

Apenas nas últimas páginas do livro, Carrère volta a manifestar alegria. Ele retorna à França, reencontra amigos, adota planos e retoma o devir. Mas o mais instigante em “Ioga” me parece estar nas relações que o narrador faz entre os próprios pensamentos, as filosofias, os acontecimentos cotidianos dos mais diversos personagens, da literatura que cita. Não há lugar onde a contradição não se apresente. Durante a leitura, a contradição é evidente tanto na embriaguez quanto na meditação. Talvez ela seja o perene que tanto buscamos tentando evitá-la. Em um universo doente de limites sufocantes, onde é tão comum sentir que “eu continuo a não morrer”, como provoca o escritor, tomar alguns instantes por dia para se libertar da necessidade de fazer sentido e deixar que a contradição flua livremente pode ser uma alternativa mais saudável. Para isso, não há lugar melhor do que a arte, o movimento.

Convite Especial: Café Filosófico


Temos o prazer de convidá-los para o V Café Filosófico, um encontro especial onde pais e filhos poderão compartilhar um momento de reflexão e diálogo sobre os dilemas da vida.


Em um mundo repleto de desafios e mudanças constantes, criar espaços para conversas significativas fortalece os laços familiares e amplia nossa visão de mundo. Neste evento, vamos explorar juntos questões que nos fazem pensar, crescer e nos conectar de maneira mais profunda.


Por que participar?
✔ Fortaleça a relação com seu filho(a) por meio do diálogo
✔ Reflita sobre valores, escolhas e desafios da vida
✔ Compartilhe ideias em um ambiente acolhedor e inspirador

Data e local: Zeppelin

Contaremos com um ambiente descontraído e um delicioso café para tornar este momento ainda mais especial!
Venha viver essa experiência enriquecedora conosco! Sua presença fará toda a diferença.
Esperamos você e sua família!

Ingressos para o V Café Filosófico:

https://cafefilosoficoo.lojavirtualnuvem.com.br/produtos/1-lote-ingressos

Comunidade do “Café Filosófico” no WHATSAPP:

https://chat.whatsapp.com/Ewehn3zxEBr6U0z96uZllP

Obs. Caro leitor, o objetivo aqui é estimular a sua reflexão filosófica, nada mais! mais nada!

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    Professor Caverna

    Caverna é professor de Filosofia, criador de conteúdo digital e coordenador do projeto “Café Filosófico” em Foz do Iguaçu.