Por Marcos Gabriel Tragueta

Axiologia das Escolas Filosóficas Ocidentais
Entre fundamentos ontológicos, consciência prática e revoluções axiológicas
A história da filosofia pode ser compreendida como uma longa reflexão sobre aquilo que deve ser buscado, preservado e cultivado. Embora o termo “valor” seja moderno, só aparecendo de forma sistemática na filosofia a partir do século XIX, a preocupação com o bem, a virtude, o justo e o belo atravessam milênios de pensamento. Desde a Grécia antiga até os debates contemporâneos, as perguntas centrais da Axiologia foram antecipadas ou formuladas de modo implícito por pensadores que buscavam compreender o sentido da existência, os critérios do juízo moral e a finalidade da vida humana.
Este artigo, inicia uma jornada pelo pensamento ocidental, sob a luz da Axiologia, propondo um exame aprofundado dos filósofos mais influentes que, em diferentes contextos históricos e perspectivas teóricas, contribuíram decisivamente para o desenvolvimento das ideias que hoje constituem o campo da Axiologia.
Platão (c. 427–347 a.C.) – Axiologia Platônica: Fundamentos Metafísicos do Valor
Platão estabeleceu os alicerces metafísicos sobre os quais grande parte da tradição axiológica ocidental seria construída. Em sua filosofia, a investigação sobre a natureza do valor é indissociável da busca pela verdade. A questão “o que é o Bem?” não é apenas ética, mas profundamente ontológica. Sua obra responde a uma crise de fundamentação que marcou o período pós-socrático, onde o relativismo dos sofistas, representado por Protágoras e Górgias, ameaçava dissolver qualquer noção objetiva de valor. A condenação de Sócrates pelo Estado democrático serviu, para Platão, como emblemática das consequências catastróficas de uma sociedade guiada pela doxa (opinião pública vigente) em detrimento do episteme (conhecimento verdadeiro, de natureza científica). Sua filosofia, portanto, emerge como um projeto de resgate da objetividade do valor, ancorando-o não em convenções humanas, mas na própria estrutura da realidade inteligível.
I. A Arquitetura da Realidade: Dualismo Ontológico e Hierarquia Axiológica
A base de toda a axiologia platônica é a distinção fundamental entre dois reinos ontológicos, exposta de forma sistemática em diálogos como A República (Livros VI-VII) e Fédon. Esta distinção não é meramente cosmológica, mas possui implicações axiológicas diretas, estabelecendo uma hierarquia de valor baseada na proximidade em relação ao princípio inteligível.
Segundo Platão, o Mundo Sensível (Kosmos Aisthetos) constitui o domínio da experiência empírica, acessível através dos sentidos. Caracteriza-se pela mudança (genesis), pela imperfeição e pela multiplicidade. Nele, encontramos exemplos particulares de beleza, justiça ou igualdade, mas estes são sempre instáveis, contingentes e incompletos. Como observa G. M. A. Grube em Plato’s Thought (1935) (p. 47), o mundo sensível é uma cópia imperfeita do mundo real das Ideias. Um objeto belo pode ser destruído; uma ação justa pode ser contestada. É o reino da aparência, onde os valores se mostram de forma fragmentada e fugaz, participando (methexis) apenas parcialmente de suas Formas correspondentes.
O Mundo Inteligível (Kosmos Noetos), por outro lado, é o domínio da realidade verdadeira e eterna, acessível apenas à razão (nous). É aqui que residem as Ideias ou Formas (Eide), entidades imutáveis, perfeitas e universais que servem como arquétipos de tudo que existe no mundo sensível. Enquanto no mundo sensível há múltiplas coisas belas, no inteligível há a Forma da Beleza em si, una e eterna. Julia Annas em An Introduction to Plato’s Republic (1981), sintetizou em seu livro que: “algo inteligível, é algo que tem de ser elaborado e compreendido pela mente; só chegaremos a perceber que existe tal coisa se pensarmos sobre a matéria em vez de nos contentarmos com o que podemos experimentar.” (p. 217).
A relação entre estes dois mundos foi objeto de contínua reformulação pelo próprio Platão. O problema do “terceiro homem”, discutido no Parmênides, revela as dificuldades inerentes à teoria da participação. Como expõe Gregory Vlastos em The Third Man Argument in the Parmenides (1954), há uma contradição interna na Teoria das Formas. No entanto, o autor ressalta que, embora o argumento revele graves dificuldades na teoria da participação e na noção de separação entre Formas e particulares, ele não invalida a distinção fundamental entre universal e particular, que permanece como um legado filosófico crucial, ainda que Platão não tenha conseguido resolvê-lo completamente devido à falta de clareza sobre suas próprias premissas.
II. O Bem como Arkhé Axiológica: A Analogia do Sol
Para o filósofo, no ápice deste mundo inteligível, situa-se a Forma do Bem (to agathon). Sua natureza e função são elaboradas por Sócrates na Analogia do Sol, em A República (508a-509c). Assim como o Sol no mundo visível não é apenas um objeto entre outros, mas a causa que possibilita a visão, o crescimento e a própria existência dos seres sensíveis, o Bem no mundo inteligível transcende as demais Formas.
Ele é descrito como a causa da inteligibilidade das demais Formas (iluminando-as para a razão, assim como o Sol ilumina os objetos para os olhos) e a própria fonte de seu ser. Na tradução canônica de A República 509b, Sócrates afirma: “O Bem não é a essência, mas ainda está para além da essência, superando-a em dignidade e poder”. Esta passagem funda uma axiologia metafísica: o Bem não é um valor moral entre outros, mas o princípio último (arkhé) de onde emanam todos os valores, sejam eles éticos (a justiça), estéticos (a beleza) ou cognitivos (a verdade).
Como interpreta Eric Voegelin em Order and History (1956), “A ordem do homem e da sociedade é parte da ordem cósmica abrangente.” (p. 105) e “A ordem da alma como revelada por Sócrates tornou-se a nova ordem das relações entre Deus e o homem.” (p. 97).
Para Voegelin, o Bem em Platão é a realidade transcendente e divina que serve de fundamento ontológico para toda a ordem, tanto cósmica quanto política. Essa visão estabelece uma axiologia rigorosamente transcendental, onde os valores não são construções humanas ou convenções sociais (imanência), mas derivam de uma fonte divina e eterna que o filósofo deve buscar contemplar para ordenar a si mesmo e à sociedade.

III. A Jornada em Direção ao Valor: A Alegoria da Caverna
Se a Analogia do Sol descreve a estrutura objetiva do valor, a Alegoria da Caverna (A República, 514a-520a) narra o processo subjetivo de sua descoberta. Os prisioneiros acorrentados representam a humanidade comum, que confunde as sombras das convenções sociais e dos prazeres sensoriais (doxa) com a realidade. A filosofia é o processo de libertação das correntes, uma ascensão dolorosa e gradual do mundo das sombras (sensitivo) para a luz do mundo exterior (inteligível).
Esta jornada é uma metáfora poderosa para a educação (paideia) como conversão da alma. Não se trata de acrescentar informação, mas de reorientar toda a capacidade cognitiva e avaliativa do indivíduo. O ápice é a contemplação do Sol, a Forma do Bem. Contudo, a axiologia platônica possui uma dimensão social inalienável: o filósofo deve retornar à caverna. A posse do conhecimento do Bem implica o dever ético de governar e orientar a comunidade.
Em The Fragility of Goodness (1986), Martha Nussbaum interpreta a descida do filósofo de volta à caverna, como símbolo da inseparabilidade entre a vida contemplativa e a responsabilidade política. Para ela, Platão reconhece que o conhecimento do bem, alcançado pela razão filosófica, só se realiza plenamente quando é colocado a serviço da pólis. Assim, a tensão entre contemplação e ação não é um erro a ser superado, mas uma condição constitutiva da vida ética e filosófica. Um dos legados mais duradouros do pensamento platônico, segundo Nussbaum.
IV. A Alma como Locus do Valor: A Psicologia Ética
Para que o valor se realize na ação, é necessário um agente ordenado. No Livro IV de A República, Platão apresenta sua teoria da alma tripartite, que serve de microcosmo para sua metafísica. A alma justa é o análogo perfeito da cidade justa:
- Parte Racional (logistikon): Busca a verdade e o bem geral, devendo governar. Sua virtude é a Sabedoria (sophia).
- Parte Irascível (thymoeides): Fonte da coragem e da perseverança, deve ser aliada da razão. Sua virtude é a Coragem (andreia).
- Parte Apetitiva (epithymetikon): Responsável pelos desejos básicos, deve ser governada e moderada. Sua virtude é a Temperança (sophrosyne).
Quando estas três partes operam em harmonia, sob a liderança da razão, surge a quarta virtude: a Justiça (dikaiosyne). A justiça, portanto, não é primariamente uma virtude social, mas um estado de ordem e saúde psíquica interna. O valor moral é, assim, a expressão de uma alma que espelha em sua própria estrutura a hierarquia e a ordem do mundo inteligível.
Esta psicologia ética, como observa Terence Irwin em Plato’s Ethics (1995), forneceu uma base naturalista para a virtude, sem recorrer ao transcendentalismo das Ideias, representando uma importante transição no pensamento platônico.
V. Anamnesis: A Epistemologia do Valor
Como uma alma encarnada no mundo sensível pode acessar os valores eternos do mundo inteligível?
A teoria da reminiscência (anamnesis), desenvolvida no Mênon (81a-86c) e no Fedro (249b-c), fornece a resposta epistemológica. O conhecimento, especialmente o conhecimento valorativo (reconhecer o que é verdadeiramente bom, belo ou justo), não é uma aquisição externa, mas uma recordação.
A alma, sendo imortal, já contemplou as Formas antes do nascimento. O aprendizado na vida sensível é, na verdade, um despertar dessa memória latente. Isso explica a natureza a priori de nosso reconhecimento do valor: não precisamos que nos definam a Justiça para, diante de um ato justo, sermos capazes de identificá-lo como tal.
Dominic Scott argumenta em Recollection and Experience (1995), a anamnese em Platão transcende a função de explicar a origem do conhecimento para definir sua própria natureza: o verdadeiro conhecer é um ato de reconhecimento de verdades eternas e imutáveis. Esta concepção funde inextricavelmente a epistemologia com a axiologia, pois o objeto paradigmático desse conhecimento não é um fato contingente, mas a realidade das Formas do Bem, do Justo e do Belo. Dessa forma, o acesso aos valores não é um sentimento ou uma convenção, mas uma modalidade do próprio processo cognitivo, que consiste em recordar e reconhecer as verdades absolutas com as quais a alma já está em contato.
VI. Legado e Diálogo com a Axiologia Contemporânea
A influência da axiologia platônica é imensurável, moldando o pensamento de Plotino, Santo Agostinho e toda a filosofia medieval. Seu realismo moral, no entanto, foi desafiado pela virada moderna. Kant, por exemplo, internalizou o fundamento do valor na razão prática, abandonando sua base metafísica transcendental.
No século XX, a fenomenologia tentou resgatar uma certa objetividade do valor. Max Scheler, em sua ética material dos valores, postulou uma hierarquia de valores sentimentados emocionalmente, que, embora independentes dos bens que os portam, ainda guardam um eco da objetividade platônica, mesmo que rejeitando seu caráter transcendente. Nicolai Hartmann, por sua vez, elaborou uma ontologia dos valores como essências ideais que demandam realização, aproximando-se de um platonismo moderado.
A crítica contemporânea, representada por autores como Karl Popper em The Open Society and Its Enemies (1945), vê no platonismo as sementes do totalitarismo.
De acordo com Dominic Scott, a “anamnese” em Platão vai além de explicar como conhecemos: ela define o que é o conhecimento. Para Platão, conhecer de verdade é reconhecer verdades eternas que já estavam em nossa alma. Isso significa que, para ele, não separamos o conhecer (epistemologia) do valor (axiologia). O que é Bom, Belo e Justo também é objeto de conhecimento.
No entanto, é justamente essa visão que o filósofo Karl Popper critica duramente. Se apenas alguns filósofos têm acesso a essa “verdade absoluta” sobre o Bem, isso pode servir para justificar um governo autoritário, no qual uma elite impõe sua visão a todos, sem espaço para questionamentos ou mudanças. Popper defende, em oposição, uma sociedade aberta, onde os valores são debatidos publicamente e estão sempre sujeitos a revisão.
Portanto, a leitura de Scott nos ajuda a entender não só o núcleo do pensamento de Platão, mas também o porquê ele se tornou alvo de uma das críticas mais influentes da filosofia política moderna.
**REFERÊNCIAS**
ANNAS, J. **An Introduction to Plato’s Republic**. Oxford: Clarendon Press, 1981. https://archive.org/details/julia-annas-an-introduction-to-platos-republic/page/n1/mode/2up
COOPER, J. M. (Ed.). **Plato: Complete Works**. Indianapolis: Hackett Publishing, 1997.
GRUBE, G. M. A. **Plato’s Thought**. London: Methuen & Co., 1935. https://archive.org/details/dli.ernet.15890/page/47/mode/2up
IRWIN, T. **Plato’s Ethics**. New York: Oxford University Press, 1995. https://archive.org/details/platosethics0000irwi
https://books.google.com.vc/books?id=g3Q8DwAAQBAJ&printsec=frontcover&rview=1#v=onepage&q&f=false
NUSSBAUM, M. C. **The Fragility of Goodness: Luck and Ethics in Greek Tragedy and Philosophy**. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. https://toleratedindividuality.wordpress.com/wp-content/uploads/2015/10/the-fragility-of-goodness-luck-and-ethics-in-greek-tragedy-and-philosophy.pdf
PLATÃO. **A República**. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
PLATÃO. **Fédon**. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2011.
PLATÃO. **Mênon**. Tradução de Maura Iglésias. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2001.
PLATÃO. **Fedro**. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2011.
PLATÃO. **Parmênides**. Tradução de Maura Iglésias. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2003.
POPPER, K. R. **The Open Society and Its Enemies**. London: Routledge, 1945.
SCOTT, D. **Recollection and Experience: Plato’s Theory of Learning and Its Successors**. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. https://archive.org/details/recollectionexpe0000scot
STRAUSS, L. **Natural Right and History**. Chicago: University of Chicago Press, 1953.
VLASTOS, G. The Third Man Argument in the Parmenides. **The Philosophical Review**, v. 63, n. 3, p. 319-349, 1954. https://moodle.unifr.ch/pluginfile.php/1327070/mod_resource/content/1/Vlastos%201954%20The%20Third%20Man%20Argument%20in%20the%20Parmenides.pdf
VOEGELIN, E. **Order and History, Volume 3: Plato and Aristotle**. Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1956. https://dokumen.pub/order-and-history-plato-and-aristotle-volume-3-0826212506-9780826212504-9780826263926.html
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