Organizações do Brasil e da Argentina condenam a abertura de estradas em parques nacionais

Proposta está em projeto de lei que tramita com urgência na Câmara dos Deputados.

Apoie! Siga-nos no Google News

Mais de 400 organizações da sociedade civil e personalidades enviaram aos deputados federais nesta segunda-feira nota de repúdio a projeto de lei que libera abertura de estradas em parques nacionais e outras unidades de conservação da natureza. De acordo com a proposta (PL984/2019), o primeiro a ser atingido seria o Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, o segundo mais visitado do Brasil (atrás do Parque Nacional da Tijuca, onde está o Cristo Redentor).

O autor do projeto, deputado Vermelho (PSD-PR), pretende dividir a unidade de conservação em duas, passando uma estrada no meio e liberando o tráfego inclusive para veículos pesados, como caminhões, sem qualquer restrição. Como altera a lei que rege as unidades de conservação no país, permitindo a abertura de estradas em todas elas, o projeto representa um retrocesso histórico na gestão das unidades de conservação no Brasil.

Vermelho, deputado e empresário da base de apoio de Bolsonaro, se refere erroneamente à abertura de rodovias nos parques como “criação de estradas-parque”. Trata-se de fake news para passar boiada em comboio de treminhão. Estradas-parque são criados onde já há uma rodovia, com o objetivo de preservar a beleza cênica e patrimônios culturais ou históricos às suas margens. Uma estrada-parque não se destina a preservar espécies ameaçadas de extinção, como é o caso do Parque Nacional do Iguaçu, que abriga uma crescente população de onças-pintadas. Os parques nacionais estão entre as unidades de conservação de proteção integral justamente para proteger a natureza de caçadores, incêndios, desmatadores, atropelamentos e, obviamente, estradas. Rodovias e conservação da natureza são conceitos antagônicos.

A nota enviada pelas organizações lembra que a abertura da estrada facilitará a entrada de criminosos no parque, para atividades como transporte de drogas, armas e mercadorias ilícitas. O Parque Nacional do Iguaçu fica na tríplice fronteira do Brasil com Argentina e Paraguai. A região é reconhecida como porta de entrada de drogas e de armas que abastecem o tráfico e as milícias no Rio de Janeiro e em outras grandes cidades.

Organizações que trabalham com conservação da natureza na Argentina também se manifestaram em carta ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (Prograssistas/AL). “Diante do grave e iminente risco à integridade do Parque Nacional do Iguaçu e da população de onças-pintadas pela qual estamos trabalhando há mais de uma década, respeitosamente expressamos a nossa enorme preocupação frente à perspectiva que supõe esse projeto de lei e pedimos que arbitre os meios para evitar sua aprovação”, diz o documento.

“Esse projeto é um dos maiores retrocessos para a gestão das unidades de conservação da natureza”, avalia a bióloga Angela Kuczach, diretora-executiva da Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação. “No caso do Parque Nacional do Iguaçu, teremos perda de biodiversidade em um dos parques mais importantes do Brasil e do mundo, que abriga espécies ameaçadas, como a onça-pintada. Além disso, o projeto representa danos gigantescos para a economia e para a segurança da região. Os turistas não vão querer visitar um parque que desmata a Mata Atlântica, um dos biomas mais destruídos do mundo”, completa.

A discussão do projeto de Vermelho se dá em momento delicado da governança socioambiental brasileira. O presidente do Ibama, Fortunato Bim, foi afastado do cargo por decisão judicial, por suspeita de corrupção. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é investigado por suposta colaboração com madeireiros ilegais. E uma comissão do governo estuda neste momento a possiblidade de extinção do ICMBio, órgão responsável por administrar as unidades de conservação da natureza.

A rodovia proposta no Iguaçu retomaria o antigo leito de uma estrada de terra aberta ilegalmente nos anos 1950 e fechada por ordem judicial em 1986. Nova abertura ilegal foi feita em 1997 e barrada definitivamente em 2003. Hoje, o antigo caminho está completamente regenerado e tomado pela Mata Atlântica.

Durante o período em que esteve aberta, a estrada era usada para a prática de crimes. Era rota de contrabando e tráfico de entorpecentes e armas. Facilitava a caça de animais, inclusive ameaçados de extinção. A estrada foi usada até para execuções ilegais de opositores à ditadura militar (1964-1985). Entre eles, pelo menos seis militantes capturados na Argentina e executados por forças do Exército Brasileiro em uma emboscada no local, episódio narrado no livro “Onde foi que vocês enterraram os nossos mortos”, escrito pelo jornalista Aluízio Palmar, um sobrevivente. O caso também foi investigado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). Os corpos das vítimas foram enterrados às margens do antigo caminho.

Em outra tentativa de reabertura da estrada, em 2014, a Comissão Nacional da Verdade se manifestou em nota contra a proposta: “Este é um local de que deve ser preservado em atenção não apenas à proteção do meio ambiente, mas também do direito à memória. Este é um local de memória. A CNV exorta, por isso, o Congresso Nacional a não permitir a reabertura proposta”.

O período de fechamento definitivo da estrada coincide com o aumento da população de onças-pintadas no Parque Nacional do Iguaçu. Em 2009, restavam entre nove e 11 onças-pintadas no Parque, e a espécie estava perto da extinção local. Este quadro foi revertido com pesquisa, fiscalização e engajamento das comunidades vizinhas. O esforço deu resultado, como apontam as contagens feitas a cada dois anos, por meio censos realizados simultaneamente no Brasil e na Argentina. Em 2016, o estudo apontou a existência de 22 onças-pintadas no parque. Em 2018, o levantamento indicou um aumento de 27%, e o total se elevou para 28 animais. Desde 2019, já foram identificadas dez novas onças no parque, incluindo três filhotes. A abertura de uma estrada nesse habitat traria não só o risco de atropelamento e de ação de caçadores, mas também segregaria animais, impedindo sua reprodução. Na última semana, armadilhas fotográficas captaram imagens de uma onça-pintada no interior do parque, em mais uma prova da recuperação da espécie na região.

O Parque Nacional do Iguaçu, criado em 1939, abriga uma riquíssima biodiversidade de flora e fauna, incluindo mais de 250 espécies de árvores, 550 de aves, 120 de mamíferos, 79 de répteis, 55 de anfíbios e, junto com o nosso Parque Nacional Iguazú, na Argentina, tem uma das últimas populações de onça-pintada do sul da América do Sul. Ainda junto com a Argentina e Paraguai, forma um dos maiores remanescentes de Mata Atlântica.

Empresários ligados ao turismo temem que a agressão ao parque impacte seus negócios. A região de Foz do Iguaçu é um dos principais destinos de turistas estrangeiros no Brasil. Em 2019, o Parque recebeu mais de 2 milhões de visitantes. Entre 2013 e 2016, a receita bruta oriunda de seus visitantes pagantes foi de aproximadamente US$ 25 milhões, sem incluir a circulação econômica indireta (comércio, hotéis, restaurantes etc), estimada em mais de US$ 40 milhões.

“Todos os dados nos dizem que isso seria uma ameaça significativa para a única população crescente de onças-pintadas remanescentes da Mata Atlântica, localizada no Iguaçu. Ameaça para a biodiversidade, para a segurança pública e para a economia”, afirma Carmel Croukamp, presidente do Instituto Claravis e CEO do Parque das Aves, um dos principais atrativos de turismo de Foz do Iguaçu.

“A economia da região do Iguaçu é dependente do turismo, centrada no Parque Nacional do Iguaçu, nas cachoeiras, na floresta, na vida selvagem. Imagine a visão de escavadeiras derrubando hectares de Mata Atlântica dentro de um parque nacional”, diz. “A indústria do turismo em Iguaçu já está de joelhos por causa da pandemia. Muitas pessoas do setor hoje dependem de doações de alimentos. Fazer isso em nome do turismo ou da biodiversidade da nossa região é uma vergonha para nós, porque não corresponde aos fatos nem às nossas fontes de renda ”, completa.

A série de ameaças representada pela proposta de abertura da estrada traz ainda a possiblidade de o parque perder o título de patrimônio Natural da Humanidade, concedido pela Unesco em 1986.

“Trata-se de um retrocesso sem precedentes, que pode trazer muitos impactos negativos à conservação no Brasil”, avalia a gerente de Ciências do WWF-Brasil, Mariana Napolitano. “A aprovação deste projeto autorizaria o retalhamento de parques nacionais e outras unidades de conservação em todos os biomas brasileiros”, diz.

“A abertura de uma estrada dividindo o parque em dois traria péssimas consequências para a conservação do Iguaçu e de sua biodiversidade”, diz o presidente do Conselho de Meio Ambiente de Foz do Iguaçu, Raby Khalil. “Seria o caminho para a destruição, prejudicando não só as onças-pintadas e a natureza, mas toda a cadeia do turismo e a economia da região. Não permitiremos esse retrocesso”, completa.

LEIA TAMBÉM

Comentários estão fechados.