Um antigo cemitério indígena desafia o tempo e resiste como fiapo da história na atual área do aterro sanitário de Foz do Iguaçu, no Porto Belo, Região Norte da cidade.
Não há informações precisas sobre a origem do cemitério, mas sabe-se que uma pequena comunidade de guaranis que vivia na área sepultava os mortos no local.
Com o tempo e o avanço da urbanização, o espaço ocupado pelo cemitério foi tomado pelo aterro, e o acesso para visitar os túmulos não é mais permitido.
A história do lugar é tão misteriosa quanto a vida após a morte, e desvendá-la é como montar um quebra-cabeças que ainda tem peças faltantes.
Pouca se sabe sobre a origem e a data em que os sepultamentos tiveram início. Recentemente, a reportagem do H2FOZ conseguiu unir algumas pontas da história.
A equipe localizou vestígios do campo-santo no aterro e conversou com a professora Joana Mongelo Vangelista, moradora de Florianópolis, que tem parentes sepultados.

Joana esteve em Foz do Iguaçu para ministrar aulas de Língua Guarani na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).
Nascida na cidade, ela é de uma família de indígenas guaranis que vieram do Paraguai e viviam na área onde hoje é o Porto Belo, à época conhecido por Segundo Distrito.
A professora contou lembrar-se da existência do cemitério quando era criança e que tem na memória a imagem da mãe levando buquê de flores para homenagear o avô e os tios no campo-santo.

Ela disse que o cemitério era exclusivo dos guaranis, porque naquela região, até então, não havia pessoas brancas morando.
Nas memórias dela, ainda estão vivas as cenas da mãe limpando túmulos e voltando chorando após homenagear os parentes enterrados lá.
Assista ao vídeo:
Itaipu refez mapa do território guarani
Com o tempo e o início das obras de Itaipu, a partir de 1974, o mapa do lugar começou a mudar. “No rádio dizia: quem morasse perto da Itaipu tinha que ir todo mundo embora”, relatou Joana.
Quando eram 11h40, tocava um apito de 10 a 15 minutos para avisar que todos os moradores deveriam sair de casa e ficar embaixo de árvores, pois haveria explosões. Segundo ela, as casas tremiam, e as frutas caíam das árvores.
Em razão do transtorno, muitas famílias acabaram deixando o local, exceto a de Joana.
A professora morou em Foz do Iguaçu até por volta dos 21 anos. Até essa época, ela trabalhava de babá e doméstica e se mudou para Florianópolis para acompanhar a família da patroa, esposa de um oficial da Marinha.
Lá, frequentou o Centro Estadual de Educação de Jovens e Adultos (CEEJA), graduou-se, seguiu estudando mestrado e hoje é doutora especializada no ensino da língua e cultura guaranis.

Jornal registra parte da história
Outra importante peça para resgatar a história do cemitério é o recorte de uma matéria publicada no jornal A Gazeta do Iguaçu do dia 17 de novembro de 1999. O texto, assinado pela jornalista Sônia Inês Vendrame, traz uma entrevista com a mãe de Joana, Francisca Recalde Mongelo.
Na publicação, consta que o campo-santo, que ficava na área do lixão, já estava ameaçado em razão da retirada de terras do lugar para ampliar o aterro. Era um dos maiores cemitérios de Foz no início da colonização, revelou Francisca.
Ela também informou à jornalista que o cemitério era a única lembrança que tinha do pai.

À época, alguns túmulos ainda estavam visíveis, e o único com identificação, conforme a reportagem, era o de Enrique Recalde, com data de 1958, que é avô de Joana.
Conforme relatos de Francisca, parte do campo-santo já havia sido destruída em razão da abertura de estradas e das escavações para fazer o aterro.
Em outro trecho do texto, consta que uma família inteira de Toledo foi enterrada no local após sofrer um acidente.
A matéria ainda informa que o então secretário municipal de Meio Ambiente, Adilson Rabelo, desconhecia a existência do cemitério na área do aterro.
Cemitério é importante para o passado e a ancestralidade
Professor do curso de História da Universidade Federal Latino-Americana (Unila), Clovis Brighenti considera o campo-santo um local de memória que conecta os indígenas com o passado e a ancestralidade.
Quando há o apagamento desses locais, apaga-se a memória do próprio povo indígena, frisa.
Segundo ele, com a construção da Itaipu Binacional, na década de 1970, muitos cemitérios ficaram submersos na região. Para o professor, compete à atual geração proteger a memória e os antepassados.
Conforme aqueles que ocuparam a terra guarani, o cemitério do outro é visto como um depósito, mas para os povos indígenas há um vínculo de ancestralidade, memória, história e continuidade do tempo presente. “Essas sociedades valorizam muito o passado, a nossa não”, ressaltou.
Para o professor, é importante a garantia de que o campo-santo possa continuar existindo. É preciso haver proteção, reconhecimento e valorização.
“Quando a sociedade faz isso, reconhece a importância da história regional e começa a mudar a história de que Foz começou com a chegada dos militares no século 19”, salientou.
Outra importante questão sob o ponto de vista da história é o estilo dos túmulos, que são horizontais, explicou Brighenti. Antes da colonização, os indígenas tinham o hábito de utilizar urnas funerárias.
Com a colonização e o extermínio dos povos, o uso de urnas acabou sendo abandonado pelo fato de a confecção ser lenta.
Com isso, não foi mais possível atender ao número de mortos, que crescia com a presença dos colonizadores e dos óbitos decorrentes de doenças.
Outro fator foi a influência cristã, que contribuiu para perpetuar os túmulos horizontais com cruz.
Prefeitura informa que área está isolada e preservada
O secretário municipal de Meio Ambiente, Idelson Chaves, afirmou que, conforme informações levantadas pelo órgão, o cemitério foi descoberto entre os anos 2000 e 2004.
A partir dessa data, o lugar foi cercado e isolado. Situado dentro de uma área de preservação ambiental, teria seis túmulos e fica a cerca de 200 metros da margem do Rio Paraná.
Chaves ainda recebeu a informação de que no passado havia pessoas que iam ao cemitério fazer orações. Atualmente, o acesso está proibido, porque o local fica no aterro sanitário da cidade, o qual tem cerca de 502 mil metros quadrados.
“A intenção é manter a área preservada”, mencionou.

Iphan solicitou pesquisa arqueológica
Antiga morada indígena, a região de Foz do Iguaçu é repleta de sítios arqueológicos — áreas com vestígios de atividades humanas no passado, incluindo moradias, construções ou ferramentas.
Conforme pesquisas do arqueólogo Igor Chmyz, professor aposentado da Universidade Federal do Paraná (UFPR), mais de 200 sítios arqueológicos ficaram submersos com a construção de Itaipu.
O H2FOZ entrou em contato com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) a fim de averiguar se há alguma informação sobre o cemitério.
Segundo a autarquia, há um processo de licenciamento ambiental de ampliação de um aterro sanitário em Foz do Iguaçu. “O IPHAN solicitou pesquisa arqueológica, que foi recebida e está em análise”, consta no comunicado enviado.
O instituto ainda destaca que para as comunidades indígenas não há uma diferença clara entre um sítio arqueológico e um local de memória.
Assim, de acordo com a nota, “é importante que todas as ações de pesquisa aconteçam com a participação dos grupos para entender os valores simbólicos atribuídos aos achados, garantindo que as decisões tomadas sejam respeitosas com as crenças e a cultura dessas comunidades”.
Região do Três Lagoas tem outro cemitério indígena

Na Gleba Guarani, região do Três Lagoas, um segundo cemitério indígena se apagou com o tempo.
Esquecido, o campo-santo foi aterrado e ocupado por uma olaria, e hoje persiste no lugar uma pastagem para gado.
Conforme pesquisa de Osmarina de Oliveira, defendida no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos Latino-Americanos (PPG-IELA) da Unila, em 2022, os guaranis relataram que por muitos anos enterraram os mortos no cemitério.
Porém, com o aumento da violência e as invasões da terra, na década de 1970, os sepultamentos ficaram inviabilizados, pois não havia mais segurança. Os últimos enterros foram registrados em 1973.
Em 1985, houve uma tentativa de tombamento do local, para preservação histórica, por parte do ex-vereador Sérgio Lobato, que exerceu mandato de 1983 a 1988. O vereador, falecido em 2021, relatou à época falta de apoio político e ameaças.
Em 2022, Osmarina enviou um ofício ao Ministério Público Federal (MPF) pedindo providências a respeito da situação do cemitério. Posteriormente, o documento foi enviado pelo MPF a órgãos competentes, incluindo o Iphan.
O mesmo ofício foi mandado à prefeitura, mas não houve retorno.
Acho muito importante o poder público dar um tratamento digno e DIFERENCIADO a essa questão do Campo Santo Indígena pois nenhum Povo consegue visualizar o seu futuro sem a cultuação do seu passado….
Para Foz do Iguaçu, faltam Raízes pois isso se perdeu com a imensa quantidade de forasteiros que aqui vieram….
Olá, sou da região da gleba guarani, aqui, também tem um cemitério dos guarani, que abitavam aqui nos anos 50/60, e hoje. Também se encontra. Na mesma situação.