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Ópera para todos

Espetáculo é fruto da dedicação de maestro chileno que divide com o Brasil sua experiência musical.

7 min de leitura
Ópera para todos
O regente Nicolaz González Martínez é idealizador do projeto que leva ópera à população do interior do Paraná. Foto: Marcos Futata

Aida Franco de Lima – OPINIÃO

No último 7 de setembro, inúmeros desfiles tomaram conta das ruas brasileiras para marcar a independência do Brasil. Na época do ensino médio, participar dessa solenidade, muitas vezes, era um fio de esperança de ficar independente também das matérias em que eram acrescentados pontos na média em troca de marchar na avenida. Uma espécie de toma lá dá cá. Mas nesse dia, deste ano, ao final da tarde, em Cianorte (PR), um outro evento despertou a atenção da comunidade. Inúmeras quadras da Zona 02 ficaram abarrotadas de carros. As pessoas estacionavam longe e ainda enfrentavam uma longa, mas rápida fila. E estavam em busca do quê? Ópera para todos.

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Soa inusitado, mas vale a pena nos questionarmos: será que um evento de ópera é distante da realidade do trabalhador comum porque ele não tem acesso ou porque ele não gosta? Como é que um coral, orquestra, maestro, tenor, mezzo-soprano e barítono podem “competir” com influenciadores cantores ou cantores influenciadores, com milhares de seguidores, cujas músicas viralizam nas trends e dancinhas das redes sociais? A resposta talvez esteja na perseverança.

E perseverança é o que marca a trajetória do maestro regente Nícolas González Martínez, o Nico, nascido no Chile, que migrou para Cianorte em 2018, quando fundou a Sociedade Das Alte Erbe Ltda., que significa “A Antiga Herança”. Uma alusão à herança que chega até nós por meio escrito (partituras) e que, por meio da releitura, criamos uma versão, explica Nico.

Entre as ações desenvolvidas estão o Coral Das Alte Erbe, o Coral Das Alte Erbe Kids e o curso Capacitação para Regentes. Ópera para Todos nasce do propósito de aproximar o público do interior do Brasil ao universo da ópera, com apresentação de trechos de algumas obras consagradas no repertório lírico mundial. O concerto é um projeto aprovado pela Secretaria de Estado da Cultura do Paraná com recursos da Lei Paulo Gustavo, do Ministério da Cultura do governo federal.

Nico tem uma paixão no olhar e nas palavras, ao apresentar-se para o público com seu espanhol mesclado de português, com o sotaque do Noroeste do Paraná. Ele é um entusiasta que leva a música onde o povo está. Viver de arte no Brasil é um desafio enorme. E quando essa arte envolve a música erudita?

Os instrumentistas, músicos formados e com trajetória, são convocados para projetos específicos quando o orçamento consegue honrar o valor dos serviços desses profissionais. O repertório do Coral Das Alte Erbe é exigente, e por mais que seja um coral amador atinge alto nível de execução do repertório chamado de “clássico” ou “erudito”. Uma joia rara paranaense.

No Paraná, o coral com tais características é o de Curitiba, com o diferencial de que os integrantes são concursados para a função, com ensaios diários. No caso do Coral Das Alte Erbe, os componentes são de diversas áreas e ensaiam uma vez na semana, visto que o coral está mais para um hobby que atividade remunerada. O critério de seleção é fazer um teste auditivo e realizar, pelo período de dois meses, aulas regulares com algum professor de canto.

“Muitas vezes se olha para São Paulo como se fosse um selo de qualidade, mas acredito que o mais importante é cada agrupação construir sua própria história com firmeza e confiança. O Das Alte Erbe mostra que está no caminho certo: confia na liderança do maestro Nicolás González, enfrenta o desafio de cantar repertório difícil em outras línguas e consegue mobilizar mais de mil pessoas em pleno feriado para ouvir música de concerto. Isso é prova de potência cultural. É claro que nas capitais existe maior acesso a professores, escolas de música, conservatórios, universidades e teatros, mas nada disso substitui a coragem e a dedicação de um grupo que, mesmo distante dos grandes centros, consegue inspirar artistas e público. Como cantor, senti-me amparado pelo coro; como maestro, inspirei-me ao ver amadores alcançando um trabalho de referência. Espero poder voltar em breve a Cianorte e encontrar um cenário musical ainda mais forte, fruto do reconhecimento e do investimento que o poder público precisa oferecer a iniciativas tão transformadoras. Viva o Das Alte Erbe, viva maestro Nicolás González e viva a música de concerto!” — Clóvis Português

Em dezembro de 2022, via Lei Rouanet, foi executado um concerto similar, patrocinado pela Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (CMNP) após dois anos de busca de patrocínios. E em 2023 foi lançado edital estadual que gestiona verbas federais da Lei Paulo Gustavo. Entre as burocracias e processos seletivos, somente em 2025 puderam executar o projeto, sem busca de patrocínios, já que era repasse direto.

Atualmente, a Sociedade Das Alte Erbe Ltda. conta com dois projetos Rouanet aprovados, mas o prazo está esgotando sem que haja financiador interessado em abater o valor do projeto no Imposto de Renda. Diferentemente do que se pensa, a Lei Rouanet não entrega o dinheiro na conta. Cabe ao agente cultural buscar empresas interessadas em apoiar o seu projeto. E essa procura nem sempre é concluída com sucesso.

Seja em Cianorte ou qualquer outra cidade do Brasil, o fato é que a música erudita precisa ter espaço para que a comunidade a conheça e valorize. Sim, é possível lotar um recinto com pessoas que buscam um espetáculo sonoro e uma sincronia de vozes e instrumentos, sem ficar refém apenas de ritmos passageiros e apelos visuais.

Nico deixa todo mundo à vontade. Há o cuidado em deixar o público familiarizado com o espetáculo. É um verdadeiro tutor. Nas laterais são dispostas as legendas das músicas apresentadas, e o programa impresso é entregue a cada um dos convidados, que podem acompanhar e ambientar-se. E sutilmente o maestro ainda faz uma inclinação para sinalizar e indicar o término e continuidade de cada trecho, para que a palma fora de hora não deixe ninguém intimidado.

Público lotou o espetáculo e prova que há uma audiência ávida por música erudita, só precisa ter a seu alcance. Foto: Marcos Futata

O que presenciei foram pessoas empolgadas e emocionadas em suas cadeiras, seguindo o ritmo com o leve balançar dos pés ou das cabeças e, claro, quase um desejo incontrolável de reger junto também. A cada intervalo, a cada vez que surgia a mezzo-soprano Camila Santiago, com sua voz e postura encantadoras, ou com a presença e voz do tenor Clóvis Português, assim como de Pedro Merendi, a audiência demonstrava seu encanto. Yuri Prieto, pianista, assim como inúmeros outros instrumentistas, são parte de um todo que proporcionou um momento indescritível.

Que essa oportunidade chegue a mais paranaenses e brasileiros de modo geral. A música erudita tem público. Precisamos apenas abrir as portas para que a casa esteja sempre cheia. Mas para tanto é necessário investimento, afinal barriga vazia não deixa músicos em pé.

Este texto é de responsabilidade do autor/da autora e não reflete necessariamente a opinião do H2FOZ.

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    Aida Franco de Lima

    Aida Franco de Lima é jornalista, professora e escritora. Dra. em Comunicação e Semiótica, especialista em Meio Ambiente.