O espetáculo da desgraça e o laboratório do estigma

Leia opinião de Claudio Siqueira sobre a reportagem do Fantástico intitulada como “O pior vizinho do mundo”.

Por Claudio Siqueira – OPINIÃO

A recente reportagem do Fantástico intitulada “O pior vizinho do mundo” expôs um caso extremo de violência cotidiana e omissão institucional em Foz do Iguaçu. A vítima, Giovana Nantes, médica veterinária, vive há anos sob ameaça, agressão e vandalismo cometidos por seu vizinho José.

Um inferno cotidiano

A matéria menciona um caso de 1998 em que José teria agredido os cães de um vizinho, sem ligação direta com Giovana Nantes. O caso envolvendo Giovana, segundo os relatos atuais, começou nos anos 2000, com episódios de ameaças, agressões e vandalismo direcionados a ela. Nenhuma justificativa para esse ato foi registrada publicamente até hoje, nem apresentada por ele às autoridades ou à imprensa.

Desde então, a escalada de violência incluiu depredações, ameaças a crianças e intimidações constantes. Giovana diz que só não saiu da casa porque não tem para onde ir.

A comunidade reage

Vídeos e relatos circularam nas redes, com denúncias de vizinhos e revolta pública. A pressão popular forçou as autoridades a se moverem. Foi assim que o caso chegou ao Fantástico e ganhou atenção nacional.

O silêncio sobre a saúde mental

No fim da matéria, quase como nota de rodapé, o Fantástico menciona que o agressor tem diagnóstico de transtorno mental. A essa altura, o impacto já estava dado, o julgamento formado. Não se trata de inocentar ninguém, nem passar pano para os crimes cometidos — mas sim de reconhecer que omitir ou minimizar a dimensão psiquiátrica compromete a integridade da narrativa. Mais grave ainda é explorar um doente mental como se fosse plenamente consciente e movido por pura maldade como vilão de novela. Isso é sensacionalismo. Isso é imprensa marrom. Onde estavam o Estado, a polícia, a assistência social e a saúde pública? Quando se transfere a responsabilidade institucional para o indivíduo doente, o resultado é linchamento moral, incitação ao ódio e até risco de agressão física por parte de justiceiros exaltados. A matéria, ao alimentar essa catarse, se omite no essencial: o sistema falhou em proteger tanto a vítima quanto o próprio agressor.

O peso do espetáculo

A matéria foi conduzida como um roteiro de terror. Trilha sonora, cortes dramáticos, vilania absoluta. Uma dramaturgia montada para o domingo à noite, com todo o kit do sensacionalismo: emoção no talo, complexidade no lixo. Quando uma pessoa com transtorno mental grave é retratada como criminoso lúcido, sem qualquer mediação institucional, o que se faz é construir um espetáculo em cima da desgraça coletiva. O Estado falhou com a vítima. Mas também falhou com o agressor, ao deixá-lo sem acompanhamento. A matéria transforma esse fracasso em roteiro. Entregou ao público uma história fechada, com um inimigo pronto para ser odiado — ignorando tudo o que havia por trás. Escolheu o show. E o show precisa de vilão.

A escolha de Foz

Casos como o de Giovana existem, infelizmente, aos montes no país. Mas o Fantástico escolheu Foz do Iguaçu. E isso não é neutro. A Globo tem um histórico conhecido: quando precisa de cenário para caos, crime ou desordem, aponta a câmera para Foz. Fronteira, três países, três moedas. É exótico o suficiente para virar espetáculo e distante o bastante para não incomodar o eixo. A cidade vira metáfora de descontrole. Serve como personagem de apoio para o enredo de sempre: o Brasil profundo como aberração.

Curiosamente, a emissora raramente aplica esse mesmo tom às cidades onde está sediada. São Paulo e Rio de Janeiro têm índices muito mais altos de violência e abandono institucional. Mas ali o enquadramento muda. Vira crise social. Em Foz, é barbárie. E o público aplaude.

Foz abriga uma das maiores comunidades árabes do país. Mas isso nunca vira pauta positiva. Já o imaginário sobre terrorismo, contrabando e desconfiança, esse sim aparece toda vez que a cidade entra em rede nacional. A Globo alimenta esse estereótipo há décadas. Não é coincidência. É escolha editorial.

O caso de Assad Ahmad Barakat é um exemplo emblemático. Preso em 2018 com ampla cobertura da Globo, foi acusado de financiar o terrorismo internacional a partir da Tríplice Fronteira. Na ocasião, o mandado de prisão foi expedido com base em informações da Interpol, a pedido das autoridades paraguaias. Barakat negou todas as acusações e, após processo judicial, foi condenado apenas por falsidade documental, enquadrado como crime administrativo por uso indevido de registros civis.

Nenhuma instância judicial o condenou por terrorismo, e a acusação de ligação com o Hezbollah não se sustentou em provas formais. Mesmo assim, a cobertura da Globo destacou a versão mais alarmista, contribuindo para reforçar estigmas contra a região e suas comunidades. [Agência Brasil, 2020 / CNN Brasil, 2022]

A linha editorial da Globo atende, assim, muitas vezes, a interesses geopolíticos alinhados com os EUA. O Brasil, como a ONU, não reconhece o Hezbollah como grupo terrorista. Mas isso não impediu a emissora de repetir esse rótulo em suas reportagens sobre a fronteira. Reforçando esse discurso, a Globo ajuda a pintar Foz como ameaça internacional — uma narrativa útil para pressões externas. Recentemente, os EUA tentaram classificar o PCC e o Comando Vermelho como organizações terroristas, sem base jurídica, preparando terreno para intervenções sob o pretexto da segurança hemisférica. [Reuters, 2025 / Gazeta do Povo, 2023]

Outro dado geopolítico pouco comentado: a forte presença da comunidade chinesa na fronteira. A maioria vem de Taiwan, com vínculos comerciais próximos aos EUA. Mas há também migrantes da China continental, que se fixaram e investiram na região. Parte dessa presença favorece os interesses estadunidenses; outra parte aproxima o Brasil da China. E para Washington, qualquer gesto de aproximação sino-brasileira é indesejado. A Globo cumpre seu papel quando escolhe atacar esse caldeirão de culturas. Foz, no fim, representa tudo que incomoda o discurso único. [Rede Globo / H2FOZ / BBC Brasil]

E há mais. Foz do Iguaçu compete diretamente com o Rio de Janeiro em turismo e hotelaria. É um dos principais destinos turísticos do Brasil, com estrutura para eventos e congressos internacionais. Também disputa com Assunção a centralidade logística de eventos na região trinacional. Se Foz é bem vista, ameaça o monopólio simbólico do Rio — cidade da Globo. A desconstrução da imagem de Foz é conveniente. Serve para manter o protagonismo concentrado onde sempre esteve. [H2FOZ]

E tem mais. Mas isso exigiria outro texto. Foz abriga a UNILA — Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Um projeto que reúne estudantes e pesquisadores de dezenas de países, promovendo ciência, cultura e soberania intelectual no Cone Sul. A UNILA posiciona o Brasil como articulador regional, com uma proposta de integração que incomoda quem prefere um continente fragmentado. Ao atacar Foz, a Globo reforça o preconceito contra estrangeiros e alimenta a ideia de que o que vem de fora atrasa o país. É uma xenofobia sutil. E eficaz. Porque, nesse enredo, desacreditar a inteligência latino-americana é o caminho para manter o Brasil de joelhos. [UNILA / Cadernos da América Latina – UFRGS]

Reflexões urgentes

O caso escancara a falência do Estado em duas frentes: proteger a vítima e tratar o agressor. José agiu por décadas sob o nariz das autoridades. Nenhuma medida funcionou. Ninguém foi capaz de tirar Giovana do terror nem de impedir José de continuar. Ao mesmo tempo, expõe uma mídia institucional que se comporta como imprensa marrom, omitindo responsabilidades do poder público e explorando a tragédia com narrativa de entretenimento. Fica claro que a editoria da Globo é orientada por interesses de quem detém hegemonia econômica e geopolítica, não pelo compromisso com a verdade ou com a justiça social.

Conclusão

A reportagem gerou indignação e mobilizou o país. E, infelizmente, o Estado só age quando a televisão mostra. Vale destacar que casos de abusos horríveis como esses, cometidos por poderosos contra gente pequena e indefesa, não têm o mesmo destaque e seguem impunes. A pergunta que fica: quantas Giovanas ainda não apareceram no domingo à noite? Porque o que está em jogo não é um caso isolado, mas o modo como o Brasil escolhe olhar para suas fronteiras — e para si mesmo.

Fontes consultadas


Claudio Siqueira é um cidadão iguaçuense com sotaque da fronteira.


Este texto é de responsabilidade do autor/da autora e não reflete necessariamente a opinião do H2FOZ.

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