Em tempos em que a felicidade parece mais um produto do que um estado íntimo, as redes sociais se transformaram em vitrines de bem-estar permanente. A impressão é de que todos vivem no ápice: são risos, viagens, conquistas, autocuidado exemplar e manhãs ensolaradas empacotadas em filtros de perfeição.
Assista o novo episódio:
Nesse cenário, qualquer sinal mínimo de desconforto já desperta o reflexo condicionando de “apagar” a sensação rapidamente — seja por meio de entorpecentes, distrações regadas a doses intermináveis de dopamina ou até por medicamentos usados de forma a impedir a própria experiência da dor.
A cultura da anestesia se confunde com a cultura do progresso. Mas será que reduzir o incômodo a zero, imediatamente, gera avanço real? Ou será que, ao evitar o desconforto, pulamos justamente a parte da jornada em que nos conhecemos com mais verdade?
Quem provoca esse debate é o psiquiatra Antônio Aranha, que no vídeo desta semana do Quem Foi que Disse destacou um olhar raro sobre o tema. Para ele, “a dor, por vezes, comunica algo. Ela pode ser valiosa quando ajuda a pessoa a perceber que algo precisa ser mudado. Quando encaramos a dor como convite à transformação e à melhoria, ela se torna um recurso didático. Se o sujeito busca apenas o alívio imediato, pode estar perdendo a oportunidade mais preciosa que o desconforto oferece: a chance de mudar para melhor”.
O médico lembra que a dor sinaliza um ponto de atenção interno, um desalinhamento de rota, um pedido de ajuste que vem da própria pessoa, e não apenas do corpo ou das circunstâncias.

Aranha complementa com uma visão sobre o papel do medicamento: “O remédio é muitas vezes útil para ajudar o sujeito a sair do buraco. Em quadros de sofrimento extremo, ele é fundamental para estabilizar, resgatar a saúde psíquica e oferecer uma base mínima para que a pessoa tenha condições de recomeçar. Ainda assim, depois que cumpre seu papel, o medicamento não pode substituir as ações que o sujeito precisa empreender a partir do processo de dor. Isso é insubstituível. O remédio não é varinha de condão.”
A fala reforça a importância da ciência e do cuidado clínico, mas também um ponto vital: medicamento sustenta — não ensina no lugar da experiência vivida.
O vídeo convida o público a fazer exatamente o movimento inverso ao impulso dominante da época: em vez de eliminar o desconforto, interrogá-lo. Porque por trás da dor e da fricção emocional existe um campo fértil para perguntas que nenhum analgésico alcança: o que essa sensação está tentando mostrar-me sobre mim? O que precisa ser revisto na minha maneira de viver, de relacionar-me, de trabalhar, de conduzir-me no mundo? A dor, quando olhada com curiosidade e honestidade, é um mapa apontado para dentro. É o instante em que a narrativa social desacelera e a narrativa íntima emerge com nitidez.
No fundo, buscar alívio não é falha — é humano. O problema começa quando vivemos só no alívio, sempre no alívio, apenas no alívio, sem permitir que a dor cumpra a sua função orientadora. A dor, talvez, possa ser ponte para o autoconhecimento; o remédio, como ponte para a estabilização. Mas a travessia em si — a mudança real, o esforço de melhoria, a reconstrução de si, o reposicionamento — é tarefa da pessoa em ação.
A verdadeira evolução começa quando a gente se pergunta com coragem, mesmo sem resposta pronta: “O que essa dor veio ensinar-me que eu ainda não aprendi?”
Talvez o passo mais revolucionário na cultura do sorriso interminável não seja parecer bem o tempo todo, e sim sustentar presença lúcida quando alguma coisa dói. Porque quem topa conhecer-se no desconforto descobre forças que nenhuma felicidade de vitrine alcança.
Possivelmente, a dor não veio para ser combatida — veio para ser entendida, transformada e, quando necessário, clinicamente amparada.
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