Desde que a humanidade começou a nomear suas dores, o perdão aparece como pauta recorrente, atravessando tradições espirituais, debates filosóficos e estudos sobre a mente e o corpo. No Brasil, essa discussão ganha força sobretudo em dezembro, quando os reencontros de final de ano se multiplicam — algumas vezes leves, outras nem tanto. É ali, entre abraços, silêncios e conversas inacabadas, que o perdão deixa de ser teoria e se torna necessidade concreta.
Assista o novo episódio:
Há uma expectativa cultural de que o perdão seja rápido, quase instantâneo. É comum interpretá-lo como um gesto de generosidade direcionado exclusivamente ao outro — quase um favor moral, social, afetivo. Mas, na prática, vale lembrar: o favor, quase sempre, é a nós mesmos. Quem não perdoa permanece preso à experiência, mesmo quando já não está mais nela. Permanece no acontecimento, nas mesmas narrativas, nas emoções sem saída. E o corpo — silencioso por um tempo — eventualmente encontra um jeito de falar.
O coração antes do infarto
Luiz, entrevistado do quadro “Quem foi que Disse?”, levou esse debate para um lugar inesperado e pessoal: a cardiologia. “O corpo sente quando a gente não solta a dor. O coração, no meu caso, talvez já estivesse pesado bem antes do primeiro sintoma.”
Luiz sofreu um ataque cardíaco há dois anos — um episódio que, segundo ele, tem uma relação direta com situações vivenciadas e nunca elaboradas. Ele recorre ao conceito de interação mente-corpo para explicitar sua leitura da própria história: o que a mente não traduz, o corpo grava. O que a emoção não processa, o organismo absorve.

Embora a ciência ainda investigue caminhos exatos de causalidade, há consenso em campos como a psicofisiologia: emoções sustentadas por longos períodos — como raiva, hostilidade e estresse crônico — ativam respostas hormonais, inflamatórias e neurológicas que impactam diretamente sistemas vitais, incluindo o cardiovascular.
Perdão como investigação, não concessão
A pesquisadora Angélica Guidini chegou a essa compreensão por outro trajeto: o da curiosidade ativa. Aos 65 anos, após anos de estudo em obras literárias e cursos sobre o perdão, ela reformulou sua percepção sobre o que realmente constrói o perdão. “Eu acreditava que perdoar era um jeito de encerrar um incômodo. Só recentemente entendi que a verdadeira liberação acontece quando você se interessa pela história do outro. Não para justificá-lo, mas para finalmente enxergá-lo.”
Para a pesquisadora, o perdão exige perguntas difíceis: quem é essa pessoa além do erro? O que a feriu antes? De onde veio sua dor? Ao compreender o sofrimento alheio, o ofensor deixa de ser um personagem na narrativa da mágoa e ganha profundidade humana. O perdão deixa de ser favor e se torna interpretação: um ato deliberado de compreender mais do que acusar.

O favor que rompe celas
A matéria ajuda a corrigir um mito persistente: o perdão não é narcisismo moral, nem obrigação de retorno ou convivência. Ele não exige reconciliação social automática, mas autonomia emocional. Pode existir perdão sem retorno, mas raramente existe retorno saudável sem perdão.
Quem oferece o perdão interrompe uma permanência indevida — não na pessoa, e sim no ressentimento que ocupa espaço do presente como se ainda fosse legítima defesa. O perdão reorganiza a vida psíquica de quem sente, antes de oferecer alívio a quem errou.
E com as festas de final de ano aproximando-se, a pergunta retorna, não como cobrança social, mas como cuidado de si: o que ainda mora dentro de você, porém já não precisa mais morar?
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