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“Pejotização”: que bicho é esse, que cresce no mundo do trabalho

Fenômeno impacta contrato formal, que é substituído pela relação entre dois CNPJs; entenda.

12 min de leitura
“Pejotização”: que bicho é esse, que cresce no mundo do trabalho
Forma de contrato avança em diversos segmentos laborais – foto ilustrativa: Freepik
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O trabalho regulamentado, que garante direitos e provisões de futuro, como aposentadoria e reservas em caso de demissão, corre riscos no país. A ameaça tem nome: “pejotização”. Esse fenômeno avança sem respeitar segmento laboral ou função, em que a relação trabalhista é substituída por duas empresas — ou CNPJs.

Docente de Economia na Universidade Federal da Integração Latina-Americana (Unila), a professora doutora Jacqueline Aslan Souen define “pejotização” como sendo a contratação de um trabalhador como pessoa jurídica (PJ) e não pessoa física, sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

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O objetivo, argumenta, é o “de mascarar uma relação de emprego típica”. Assim, o empregado passa a ser um prestador de serviços, responsável pelos tributos e recolhimentos previdenciários. A relação de trabalho se estabelece entre duas empresas e não mais entre empregador e empregado.

“Trata-se de uma prática que altera a natureza da relação de trabalho, transformando empregados celetistas em prestadores de serviços autônomos ou pessoas jurídicas (PJs)”, expõe. A professora lembra que a contratação de PJ é legítima em determinadas situações, mas a “pejotização” esconde o vínculo empregatício.

Com efeito, pontua, os custos da contratação são reduzidos para as empresas, ao suprimir direitos trabalhistas. “Nesse cenário, um dos maiores problemas guarda relação com o impacto negativo sobre a arrecadação da União, prejudicando as contas públicas”, reflete. Confira abaixo a entrevista pingue-pongue.

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“Pejotização” em perspectiva

Presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Turismo e Hospitalidade de Foz do Iguaçu (STTHFI), Vilson Martins vê com preocupação o aumento da “pejotização” no segmento turístico. Ele contextualiza o caso dos guias, em que grande parte é microempreendedor (MEI/CNPJ), porém inclui outras categorias.

O dirigente sindical afirma que o processo de substituir vínculo trabalhista por CNPJ vem acompanhado de outros fatores. O principal deles, elenca, é o efeito da reforma trabalhista, agregado a terceirizações desenfreadas e uso de tecnologias de locação, que impõe ainda mais informalidade à mão de obra — caso do Airbnb.

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“Vivenciamos mudanças profundas no mundo do trabalho. A maré é muito intensa a favor do segmento que detém o capital”, aponta. “Por isso, quem só tem a própria força de trabalho para oferecer, o único caminho é a união, o fortalecimento da organização que defende o trabalhador, que é o sindicato”, frisa Vilson.

A “pejotização” no turismo é vista com preocupação pelo STTHFI, pois impacta cargos tradicionais, bem como outras categorias que são representadas pela entidade, a exemplo de trabalhadoras do ramo de estética. Os movimentos em nível nacional elevam o receio.

“O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes regulamentou a reforma trabalhista como constitucional e decidiu a terceirização de modo igual. Agora, está pautando a pejotização”, sublinha Vilson Martins. “Suas decisões não favorecem os trabalhadores.”

A referência é ao fato de que Gilmar Mendes congelou decisões sobre a “pejotização”, prevendo estabelecer uma decisão de regra geral em cascata. Enquanto essa decisão não é tomada, o representante dos trabalhadores do turismo contextualiza o impacto dessas relações laborais.

“Na prática, acaba a CLT, criando uma espécie de fraude do contrato de trabalho, visando a reduzir direitos”, analisa. Em Foz do Iguaçu, detalha Vilson Martins, há iniciativas em diversas direções. “Um CNPJ de São Paulo mantém funcionários em grandes redes, o que desvaloriza profissionais que se qualificam e investem na profissão. O efeito para o empregador é volatilidade da equipe.”

Entrevista com a professora doutora Jacqueline Aslan Souen

Doutora em Desenvolvimento Econômico, na área de economia social e do trabalho, docente do Instituto de Integração Latino-Americano de Economia, Sociedade e Política (ILAESP), da Unila, a professora Jacqueline Aslan Souen leciona as disciplinas de Economia Política e Economia do Trabalho. É pesquisadora colaboradora do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Cesit/IE/Unicamp).

Ao H2FOZ, ela afirma que a “pejotização” cresce há alguns anos, reflexo da mudança nas dinâmicas do mercado de trabalho e nas estratégias de contratação das empresas. O efeito, realça, é o aumento da flexibilização e precarização. Essa nova formatação se intensificou após a aprovação da reforma trabalhista de 2017.

Para a professora, esse fenômeno vem gerando debates e preocupações no âmbito econômico, jurídico e social. E recorre aos números, com o aumento do total de microempreendedores individuais (MEIs) criados no país. Esse crescimento pode significar “aumento da ‘pejotização’ fraudulenta”, menciona.

Proliferação da “pejotização”

Dra. Jacqueline Aslan Souen: Decore de diversos fatores. Como principal, está a redução de custos para as empresas — que, ao contratar um PJ, eximem-se de uma série de encargos trabalhistas e previdenciários que incidem sobre a contratação CLT, como FGTS, 13.º salário, férias remuneradas, INSS patronal, vale-transporte, vale-refeição, entre outros.

Um ponto importante para o crescimento é a intensificação da flexibilização nas formas de contratação das relações de trabalho, a partir da reforma trabalhista de 2017. Ela abriu brechas e incentivou novas modalidades de contratação mais baratas e com menor burocracia.

Considerando nosso mercado de trabalho formal, caracterizado por um salário médio muito baixo, outro elemento de estímulo à “pejotização” é a busca por melhor remuneração. Nesse caso, o trabalhador pode aceitar a “pejotização” diante da possibilidade de ter um valor bruto maior, comparativamente ao salário que receberia como celetista, diante dos encargos maiores pagos pela empresa.

“Patrão de si mesmo”

O crescimento do discurso do empreendedorismo e do “ser patrão de si mesmo” também pode ser ressaltado como um possível fator de popularização da figura do PJ, em um cenário de crescimento contínuo de profissionais autônomos, freelancers, e da ascensão da economia gig (trabalho por demanda, via plataformas).

Essa mudança de percepção vem sendo revelada nas pesquisas de opinião, como a recente pesquisa do Datafolha, que mostrou que cerca de 60% das pessoas preferem o trabalho autônomo do que ter emprego — taxa que chega a 68% entre os jovens (de 16 a 24 anos). A mesma pesquisa indicou que, desde 2022, houve um aumento em dez pontos percentuais do número de pessoas que consideram mais importante melhorar sua remuneração a ter um vínculo de emprego formal (de 21% para 31%).

Riscos recaem ao trabalhador

A “pejotização”, especialmente quando fraudulenta, repactua as relações e contratos de trabalho de forma significativa, no sentido da precarização do trabalho, retirando direitos e transferindo riscos e responsabilidades para os trabalhadores, enquanto as empresas buscam reduzir custos. Ou seja, altera-se a natureza jurídica do vínculo, impactando diretamente os direitos e deveres de ambas as partes.

Essa repactuação ocorre principalmente nos seguintes aspectos:

  • alteração da natureza do vínculo, passando de um contrato CLT para um contrato de prestação de serviços;
  • perda de direitos trabalhistas; redução de encargos para a empresa, tornando a contratação mais “barata” e “flexível” do ponto de vista empresarial;
  • aumento da autonomia formal, mas nem sempre real do trabalhador, sobretudo na “pejotização” fraudulenta, em que o trabalhador continua subordinado e seguindo as diretrizes da empresa;
  • responsabilidade tributária e previdenciária é transferida integralmente ao trabalhador, que passa a ser o responsável por todos os recolhimentos de impostos e contribuições previdenciárias;
  • aumento de risco jurídico para a empresa, em caso de “pejotização” fraudulenta, a despeito das vantagens de redução considerável dos custos.

Risco jurídico

Caso o vínculo empregatício seja reconhecido pela Justiça do Trabalho, a empresa pode ser condenada a pagar todos os direitos trabalhistas retroativos, multas e indenizações, além de ter que arcar com os encargos sociais e previdenciários devidos; impacto na Previdência Social, na medida da queda na arrecadação de contribuições sociais, podendo comprometer a sustentabilidade do sistema.

Direitos comprometidos

Esse cenário de tendência de crescimento da “pejotização”, como modalidade de contratação, conforme explicitado, vem profundando a flexibilização e precarização do mercado de trabalho brasileiro, impactando negativamente nas condições de trabalho. Ocorre a supressão de direitos fundamentais, como férias remuneradas, 13.º salário, repouso semanal remunerado, horas extras, adicional noturno, FGTS, seguro-desemprego, entre outros.

Parece vantagem

Embora a “pejotização” possa, em alguns casos, parecer vantajosa para o profissional, devido a uma remuneração bruta maior e menor carga tributária para a PJ, essa vantagem é ilusória, principalmente se houver desvirtuamento da relação de trabalho, pois o trabalhador perde a proteção da CLT e os benefícios sociais e previdenciários associados ao emprego formal. A legalidade da contratação de PJ só se mantém quando não há os elementos que caracterizem o vínculo empregatício, como no caso de terceirização ou contratação de autônomos de forma legítima.

“Pejotização” no turismo

O setor de turismo, assim como outros setores da economia, tem sido impactado pela “pejotização”, especialmente em ocupações que historicamente sempre apresentaram certa informalidade ou flexibilidade. O caso dos guias de turismo no Brasil é um exemplo notável de como a “pejotização” se manifesta nesse setor.

O trabalho dos guias de turismo no Brasil, por exemplo, revela que, apesar de ser uma profissão reconhecida e regulamentada, apresenta condições muito precárias, e a “pejotização”, incentivada como uma forma de contratação, é um dos fatores que contribuem para isso.

Os principais impactos são uma alta informalidade, longas jornadas e baixos rendimentos, ausência de direitos trabalhistas, alta vulnerabilidade em situação de crises, como evidenciado na pandemia de covid-19, e dificuldade de organização coletiva. Esse último ponto leva a enfraquecer as ações sindicais e a capacidade de reivindicar melhores condições e proteção de trabalho.

No setor hoteleiro, a “pejotização” também pode se manifestar em diversas funções, desde recepcionistas, camareiras, garçons, cozinheiros, até gerentes e outros profissionais. A busca por redução de custos e maior flexibilidade na gestão de pessoal tem levado alguns estabelecimentos a adotarem essa modalidade de contratação.

Vulnerabilidades

No setor de turismo, a “pejotização” é prática recorrente, contudo a incidência desse tipo de contrato varia muito conforme as características do segmento, da empresa e da ocupação. De toda forma, a prática contribui para a intensificação da flexibilidade e da precariedade do trabalho, transferindo os riscos da atividade para o profissional e comprometendo sua segurança e bem-estar.

A valorização da ideologia do empreendedorismo, sem a devida proteção social, agrava ainda mais essa situação, tornando o trabalhador PJ do turismo vulnerável e desassistido.

Passo atrás

A reversibilidade da “pejotização” é um tema central no debate sobre o avanço da precarização do mercado de trabalho brasileiro. Entendo que esse é um processo que envolve muita mobilização e conscientização da sociedade. Notadamente nos casos de “pejotização” fraudulenta, a Justiça do Trabalho tem sido o principal caminho para os trabalhadores que buscam o reconhecimento do vínculo empregatício e, consequentemente, a reversão do contrato.

O ajuizamento de ações que pedem o reconhecimento de vínculo tem crescido, indicando que muitos trabalhadores buscam reverter sua condição contratual para ter acesso aos direitos trabalhistas. Quando a Justiça reconhece a existência dos elementos caracterizadores da relação de emprego, a reversão pode ser executada.

A despeito de uma atuação no sentido da maior flexibilização das relações de trabalho por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), suas decisões não legitimam a “pejotização” fraudulenta. Assim, o STF tem buscado diferenciar a legítima prestação de serviços por PJ daquela que mascara uma relação de emprego para burlar a legislação trabalhista.

Além de ações judiciais, a fiscalização do governo é outro importante mecanismo no combate dos contratos PJ fraudulentos, através do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). As denúncias de trabalhadores ou de sindicatos podem levar a investigações e autuações das empresas. O MPT, por exemplo, pode propor ações civis públicas para coibir a prática da “pejotização” em larga escala.

Negociações coletivas

Deve ser ressaltado o papel fundamental das negociações coletivas, dos sindicatos e entidades de classe no combate à “pejotização” e na defesa dos direitos dos trabalhadores. Através da negociação coletiva, podem ser estabelecidas cláusulas em acordos e convenções coletivas que visem coibir a “pejotização” e garantir a contratação formal.
Em suma, entendo que o combate e a reversibilidade desses contratos fazem parte de um movimento mais amplo de enfrentamento das condições de avanço da precarização e informalidade no mercado de trabalho brasileiro, verificado sobretudo a partir da reforma trabalhista de 2017.

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1 comentário em ““Pejotização”: que bicho é esse, que cresce no mundo do trabalho”

  1. Maria Helena

    Excelente matéria, esclarecedora em vários aspectos, o trabalhador deve repensar sempre se faz um MEI, geralmente atentam ao menor valor percentual de contribuição ao INSS, porém, quando for pleitear a aposentadoria terá surpresa desagradável, geralmente vai aposentar sob 01 salário mínimo, ou seja, ganhou até um pouco mais durante o período que trabalhou, mas ao final terá menos recurso, sem qualidade de vida. 🕵‍♀️⚖️

Os comentários estão encerrado.