O que é e a quem interessa a binacionalização da UNILA?

Renato Martins, sociólogo e cientista político, fala sobre binacionalização da UNILA.

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Renato Martins e Danielle Araújo – OPINIÃO


O diretor-geral brasileiro da Binacional Itaipu comunicou há poucos dias que a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) deverá ser transformada numa “universidade binacional”. Sem entrar em detalhes, ele adiantou que o assunto vem sendo tratado no mais alto nível entre os governos do Brasil e do Paraguai. O que significa precisamente essa proposta nós não sabemos. Daí o motivo da dúvida: o que é e a quem interessa a binacionalização da UNILA? Quais benefícios ela poderá trazer para a Universidade e o seu projeto integracionista? E para a comunidade acadêmica, docentes, discentes e técnicos administrativos, o que poderá mudar com o novo estatuto jurídico da universidade caso ele venha efetivamente a ser implantado?

Não é a primeira vez que vemos o projeto pedagógico, intercultural e interdisciplinar da UNILA tornar-se alvo de discussões. De fato, é disso que se trata, pois uma mudança da natureza jurídica da universidade implicará necessariamente em alterações no seu projeto pedagógico e na Lei No. 12.189 * que a criou. Durante o governo Temer, um parlamentar de direita propôs um Projeto Lei para transformar a UNILA na Universidade Federal do Oeste do Paraná (UNIFOP). Caso tivesse sido aprovado, a iniciativa teria amputado a vocação internacional da UNILA, desfigurando a única universidade brasileira criada para promover o ensino e a pesquisa científica acerca da integração latino-americana. Naquela ocasião, nem os reitores nem a comunidade acadêmica foram consultados, e o projeto acabou naufragando antes mesmo de ser levado a plenário.

Agora, no caso da binacionalização, a iniciativa parece se revestir de outros propósitos. Economista, pós-graduado pela USP, com especialização em integração regional, o atual diretor-geral da Binacional Itaipu  não pode ser acusado de desconhecer a importância estratégica da integração regional para o desenvolvimento, o combate às desigualdades, a transição energética e a democracia – apenas para mencionar algumas áreas em que a integração é fundamental. Desde que assumiu a direção do lado brasileiro da Itaipu, ele tem se manifestado claramente a favor do Mercosul e da UNILA. Não há motivo para desconfianças, ao menos por ora, enquanto essas dúvidas não forem devidamente esclarecidas.

Mas então, qual é o problema? A “binacionalização” não seria uma boa coisa para todos? Na nossa opinião, não. Há mais de dez anos lecionamos na UNILA, em regime de dedicação exclusiva, e podemos explicar os motivos pelos quais a consideramos preocupante – e não apenas com relação à forma como foi anunciada, mas também quanto ao mérito da própria iniciativa.

O primeiro problema começa aqui: o anúncio de uma mudança como essa teria que ser acompanhado de prévia consulta aos órgãos acadêmicos – colegiados, institutos, centros interdisciplinares, conselhos etc. A autonomia universitária é um preceito constitucional ** estabelecido no Art. 207 da Constituição Federal. Os órgãos de representação e conselhos universitários podem ter se sentido atropelados e surpreendidos com o anúncio açodado da medida. Ademais, devemos lembrar que a UNILA, desde a sua criação, se inspira nos princípios da Reforma Universitária de Córdoba***. À luz desses princípios históricos, que constituem uma referência para o ensino superior em toda América Latina,  é impensável que uma mudança do estatuto jurídico e do regimento da Universidade seja iniciado sem envolver os estudantes e seus órgãos de representação, como o Diretório Central de Estudantes e os Centros Acadêmicos. Estes espaços levaram muitos anos para serem criados, e merecem ser ouvidos. Os estudantes, ao fim e ao cabo, são a principal razão de ser de qualquer instituição de ensino superior democrática e participativa.

O segundo problema é com relação a binacionalização em si. Não está claro quais seriam os seus objetivos e desdobramentos. Da forma como foi anunciada, fica a impressão de que a UNILA poderia se converter numa universidade corporativa da Itaipu, organicamente vinculada à sua estrutura empresarial, com a gestão monopolizada por brasileiros e paraguaios. O economista Santiago Peña Palacios, ex-ministro da fazenda e atual presidente paraguaio pelo Partido Colorado, trilhou uma carreira internacional em organismos como FMI. Não lhe falta experiencia internacional. Ao que parece, a proposta de binacionalização da UNILA é de sua autoria, o que poderia levar docentes e discentes dos demais países a se sentirem sem os mesmos direitos dos paraguaios. E isto não seria bom para a UNILA – menos pela inclusão paraguaia, e mais pela sensação de exclusão dos demais.

A conjuntura de desintegração econômica e desarticulação política que se aprofundou na região depois do golpe contra Dilma, não logrou acabar com o Mercosul, como foi feito com a Unasul. Até agora o Mercosul tem resistido aos golpes desferidos por seus adversários neoliberais, e na próxima semana os presidentes do Estados Partes se reunirão no Rio de Janeiro. Esperamos que o bloco continue avançando mesmo com a recente eleição na Argentina de um governante  que se revelou hostil à integração em sua campanha eleitoral. A ser alterada agora,  a UNILA deveria considerar a possibilidade de abranger todos os países do Mercosul, membros fundadores e associados, inclusive como uma forma de mostrar que não haverá retrocesso da integração. Precisamos de mais, e não menos Mercosul. Aliás, é importante saber se Lacalle Pou e Alberto Fernández foram convidados a refletir sobre o futuro da UNILA nas conversas que o diretor geral manteve com Santiago Peña. Isto conferiria um horizonte mais amplo e consonante com os objetivos da universidade, uma instituição situada nos marcos do multilateralismo e que transcende os pactos bilaterais.

O terceiro problema, apenas para ficarmos nos impactos mais prováveis, é de ordem corporativa, e envolve os sindicatos e a legislação sócio trabalhista do setor público. Como ficariam os contratos de trabalho de servidores docentes, técnico-administrativos e empresas terceirizadas que prestam serviço à UNILA, caso essa proposta evolua? Todos passaríamos a contar com o mesmo regime da Itaipu no que tange à estrutura funcional, progressão na carreira, capacitação, nacionalidade, salários, benefícios etc.? E com relação aos concursos públicos? Seriam mantidos com os mesmos critérios definidos pelo MEC? Em caso afirmativo, de qual MEC, o do Brasil ou o do Paraguai… ? Como se vê, não se trata de meros detalhes e sua discussão pressupõe, no mínimo, uma ampla negociação com os sindicatos dessas categorias profissionais.

Muitas outras dúvidas poderiam ser enunciadas. Mas fiquemos por aqui na expectativa de que a proposta seja devidamente apresentada, nos fóruns adequados, e possamos discutir a posição da atual reitoria diante disso. Até agora não sabemos se ela endossa oficialmente a ideia de binacionalização. Apenas para concluir, é nosso dever formular uma última ordem de preocupações. Como acontece com toda Universidade, a UNILA é plural quanto as correntes do pensamento bem como de suas perspectivas metodológicas e epistemológicas. O mesmo acontece em relação às preferências políticas. Em uma palavra, somos uma instituição democrática, na qual diferentes correntes de opinião se expressam livremente. Preocupa-nos, porém, que certos grupos estejam se aproveitando das dúvidas suscitadas neste momento para lançar suspeitas infundadas, com base em argumentos que beiram o lavajatismo, contra o atual governo e a universidade. Quanto antes a reitoria esclarecer essas dúvidas, tanto melhor para toda a comunidade e o futuro da UNILA.

Renato Martins, Sociólogo e Cientista Política.

Professor do Instituto Latino-Americano de Economia, Sociedade e Política  da UNILA. Foi presidente do FoMerco (2016-2019) e chefe da assessoria internacional da secretaria-geral da presidência da República no segundo governo Lula (2006 -2010).

Danielle Araújo, Antropóloga

Professora do Instituto Latino-Americano de Arte, Cultura e História da UNILA.

* Lei 12.189 – https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12189.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%2012.189%2C%20DE%2012,Art.

* Art. 207 da Constituição Federal estabelece que “as universidades gozam, na forma da lei, de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

* Ver MARTINS, Renato. Da reforma de Córdoba a criação da UNILA.  https://teoriaedebate.org.br/2017/11/15/da-reforma-universitaria-a-unila/


Este texto é de responsabilidade do autor/da autora e não reflete necessariamente a opinião do H2FOZ.

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