Palmares: Rastros Resíduos!

O servidor Waldson de Almeida Dias fala sobre a violência contra líderes quilombolas.

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Waldson de Almeida Dias  – OPINIÃO

MÃE BERNADETE, PRESENTE! Assim tal qual Dandara e Zumbi dos Palmares e muitos outros líderes quilombolas, mãe Bernadete teve a vida ceifada pelos donos do poder, pelos colonizadores, pelos intolerantes, pelos capitães do mato, pelos ruralistas grileiros, pelos assassinos jagunços que ainda fazem o serviço a mando dos senhores feudais. ‘Dos filhos desse solo, és mãe gentil. Pátria Armada, Brasil!’ 

Na Bahia de todos os Santos, local onde a intolerância não deveria habitar, ainda existe muita gente cega que enxerga através de seu olhar somente uma realidade existente, somente em uma direção, somente para uma crença. Tudo bem que sejam portadores de uma só crença, mas estes portadores de ablepsia não toleram outra crença que não seja sua crença, nem outra maneira de pensar que não seja a sua. E eles matam por isso! 

Na última década no Brasil mais de trinta líderes quilombolas foram assassinados e em todos os casos foram usadas armas de fogo e as lideranças foram assassinadas dentro dos quilombos onde habitavam. Estes dados são da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). 

Os crimes, segundo o Conaq, aconteceram em sua maioria nos estados da Bahia, Maranhão e Pará. Sendo que existem casos também em Pernambuco, Paraíba, Minas Gerais e Alagoas. Penso eu, será que os ‘coronéis’ ainda mandam nesse país? Os crimes estão ainda sem solução. ‘Deitado eternamente em berço esplêndido…’! 

Mãe Bernadete além de líder quilombola era uma mãe de Santo, uma Yalorixá, em ioruba uma Iyálorisa, a grafia pode variar, mas a importância e o significado são únicos, é a sacerdotisa de um terreiro! Mãe Bernadete foi ex secretária de Promoção da Igualdade Racial na cidade de Simões Filho, na Bahia. Maria Bernadete Pacífico tinha 72 anos. Seu filho, Flávio Gabriel Pacífico, o Binho, que também era líder quilombola, foi assassinado há seis anos. 

O que está por trás de tudo isso? Intolerância Religiosa? Ganância pela terra? Racismo? Todos as respostas estão corretas? “São quase todos pretos, ou quase pretos…quase pretos de tão pobres e pobres. E pobres são como pretos. E todos sabem como se tratam os pretos!”, sempre é bom e edificante ouvir e citar a sabedoria de Caetano Veloso! 

Mãe Bernadete foi assassinada dentro de sua casa no Quilombo Pitanga dos Palmares. Tinha que ser em Palmares. Palmares sempre Palmares! O poeta, escritor, professor José Carlos Limeira, disse que se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo. Na minha, nada modesta opinião, palmares vive! Palmares contínua vivendo em cada quilombola que existe neste país e hoje, segundo o censo de 2022/23, o Brasil possui 1,3 milhões de quilombolas. Para ser exato, segundo os dados do censo os números são de 1.327.802 quilombolas em solos da Pátria Amada, Brasil! 

Eu, para variar, ouso descordar dos dados do censo. Isso, porque, cada negro nesse país, cada afrodescendente, são e somos quilombolas, quer queiram ou não! Pois, foi graças a resistência dos quilombos que conseguimos nos reagrupar como seres humanos, como indivíduos e permanecermos vivos, lutando por nossa vida em primeiro lugar, lutando por nossa liberdade logo a seguir, lutando por nossa dignidade, lutando…lutando…lutando. 

 O escritor e pensador da Martinica, Édouard Glissant1, nos fala em “RASTROS RESÍDUOS”, o conceito, a energia vital que manteve vivo o “migrante nu”. O migrante nu é aquele que foi transportado à força para o continente americano e que constitui a base do povoamento da espécie. Este migrante nu foi trazido de África sem bens materiais, desprovidos de bagagem física, nenhum pertence material, nenhum utensílio de trabalho, desprovidos de roupas na maioria das vezes, desprovidos de imagens de seus deuses ou de algo que lembrasse os familiares. A grande maioria dos escravizados não puderam nem se despedir de suas famílias. 

E diz Glissant: “Os africanos chegam despojados de tudo, de toda e qualquer possibilidade, e mesmo despojado de sua língua. Porque o ventre do navio negreiro era o lugar em que as línguas africanas desapareciam”.  

Do ventre dos tumbeiros, transportados nas piores condições de vida, os negros eram depositados nas senzalas, embora a educação brasileira ainda não conte essa história como ela deve ser contada, estes negros, meus antepassados, eu próprio quem sabe, lutaram por dignidade, por suas vidas, por humanidade. 

Glissant, afirma que mesmo sem trazerem nada de material, eles, os escravizados trouxeram o mais importante, os RASTROS / RESÍDUOS. E estes rastros / resíduos presentes em suas mentes, em suas lembranças é que vão influenciar na sociedade onde os escravizados são inseridos, contribuindo com as práticas sociais, artísticas, culturais, alimentares e ao mesmo tempo elevando a resiliência do migrante nu. 

Essa resiliência se manifesta no culto ao seus Deuses, ao seus Orixás, na devoção e respeito pelos seus antepassados. Não se trata de uma lembrança e sim da materialização de uma realidade que somente consegue entender quem tem a vivência ancestral de caminhar entre o passado, o presente e o futuro. A vivência ancestral de entender que todos somos um, que a humanidade é para todos: ubuntu!  

Essa resiliência fez com que o escravizado negro lutasse por sua liberdade e isso levou a se organizarem para empreender fugas das senzalas, fugas da escravidão. Os lugares onde se refugiavam eram de difícil acesso pelos senhores de engenho e seus capitães do mato, os temidos perseguidores de negros, muitos deles negros que não entendia a dimensão dos acontecimentos e por qualquer moeda faziam o que seus mestres ordenavam. Alguns defendiam que a escravidão era necessária e que até fazia bem para os negros, muitos deles se tornaram presidente da fundação Palmares, mas essa é outra história. 

Os rastros/resíduos acompanharam cada um e a todos, fixados nas mentes, nos cérebros, nos espíritos dos migrantes nus, o resgate de todo um povo resistia e estava presente no futuro. No começo estes rastros/resíduos eram passados através da oralidade e com o passar do tempo, mesmo diante das adversidades sofridas, começaram a grafar as experiências individuais.  

Os rastros/resíduos ao serem grafados se fixam e se popularizam podendo alcançar mais e mais iguais que se vem representados nas histórias, nas experiências que somadas, uma experiência mais uma experiência, resultam sempre ser mais do que duas experiências, ou seja, a soma de todas as partes se apresenta muito maior que o todo e essa ação preserva e conta a história de um continente, da diáspora africana para as américas e continua contando a história de um povo. 

Os escravizados que empreendiam fuga, se refugiavam nos quilombos. Quilombo é uma palavra de origem banto [kilombu] que significa acampamento, arraial. Durante a escravidão no Brasil significou ajuntamento de escravos fugidos. As comunidades brasileiras de ex-escravos apresentavam características de arraiais e acampamentos. O escritor e pesquisador Clóvis Moura em seu Dicionário da Escravidão Negra no Brasil 2 afirma que os negros que fugiam das senzalas se refugiavam nos quilombos. E traz uma descrição dos quilombos através da voz de um padre capuchinho chamado João Antonio Cavazzi de Montecuccolo que viveu entre os jagas e escreveu que o quilombo “constava de sete quarteirões, cada um dos quais chefiado por um oficial. No centro erguia-se a habitação do chefe principal – senhor de quilombo – rodeada por uma cerca quadrada de sebe muito forte em forma de labirinto para dificultar o acesso. A medida de habitantes em cada quilombo era de cerca de mil, entre homens e mulheres. Não havia hereditariedade na sucessão do quilombo. A eleição se fazia de acordo com a experiência”. 

Os quilombos foram a luta e a resistência contra a escravidão. As terras habitadas não pertenciam a ninguém a não ser os indígenas que aqui viviam antes do colonizador branco chegar com sua máquina de morte. Muitos indígenas ajudavam os negros fugitivos, os quilombos afro indígenas de que me falou um dia o amigo Daniel Munduruku, já existia muito antes do tempo presente. Sendo assim seu “dotô”, estas terras nos dias de hoje pertencem sim aos descendentes de escravizados, aos quilombolas, não venha “buli” com quem você não conhece, pois quem não pode com a formiga não atiça o formigueiro. 

No Brasil, Palmares foi o maior e mais famoso quilombo que existiu e os nomes de seus líderes foram reverenciados e aclamados por todo os escravizados, resultando no ódio e perseguição por parte do império. Eram eles: Acotirene, Ganga Zumba, Dandara e Zumbi. Zumbi se tornou não somente o líder mais famoso de Palmares, mas um ícone contra o racismo que persiste nos dias de hoje, tendo muitas cidades brasileiras conquistado o direito legal de efetuarem feriado no dia de sua morte, dia 20 de novembro, que se insere na semana da consciência negra, onde as lutas do migrante nu são relembradas e traçadas novas estratégias de luta e resistência. 

“…por menos que conte a história, não te esqueço meu povo! Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo!” 

                      (José Carlos Limeira) 

Seu “dotô”, o sinhô mata um e nascem mil! O sinhô manda matar mãe Bernadete para ficar com terras quilombolas, com terras que não lhe pertencem e nascem mil outras Yalorixás líderes quilombola. Sim, líderes quilombolas, pois cada terreiro hoje existente onde quer que seja é um quilombo a resistir a intolerância, religiosa, ao racismo, a violência contra as minorias, aos que não se enquadram no politicamente correto.  

Os rastros/ resíduos forjaram os migrantes nus, os negros escravizados a construírem este país. E a força ancestral, juntamente com a presença espiritual em caráter permanente, ou seja, se materializando nos seres humanos, fez com que se espalhasse em caráter permanente não mais somente entre os negros, mas em toda a gente que acredita que se pode construir um mundo melhor, em todos os seres humanos que passam a conhecer a verdade e disse um avatar famoso, chamado Cristo: “conhecereis a verdade e ela vos libertará!”. 

Cada vez mais homens e mulheres de várias etnias, multiétnicos, cultuam e formam quilombos de resistência. Embora a intolerância, a perseguição por parte de muitos ditos filhos de Deus, ainda seja grande, cada dia mais a resistência se a quilombola. 

Eu vejo que, enquanto a menina criança de pele branca, aprende com a professora veterana, também de pele branca a bater o atabaque em saudação aos orixás, os rastros/resíduos se manifestam e Palmares vive! E Acotirene Vive! 

Eu vejo que enquanto a menina mulher de pele branca, tenta conter sua ansiedade e mantém seu respeito em aprender a receber espiritualmente em seu ser de mulher os orixás que a escolheram para se manifestar, se permite batizar em uma crença ancestral, levando sua mãe que tudo assiste a emoção, Iansã abençoa, Ogum Protege e  Palmares vive! E Ganga Zumba Vive! 

Eu escuto que enquanto um ponto de exaltação aos orixás for entoado por uma única voz, não importando a cor da pele de quem canta. Exu continuará matando um pássaro ontem com a pedra que foi jogada hoje e Palmares vive! E Dandara vive! 

Eu vejo que enquanto um morador de quilombo receber um caboclo das matas, um guerreiro indígena e ele bradar “CO YVY OGUERECO YARA”, o valente Cacique Sepé Tiaraju se fará presente e todos saberão que “Essa Terra tem Dono”, e todos saberão que Palmares vive! E que Zumbi dos Palmares Vive! 

Eu fico arrepiado dos pés da cabeça ao escrever essa crônica, quando percebo que não a escrevo sozinho, eu os vejo aos milhares em meu entorno a intuir, a saudar, a me energizar para dizer o que tem que ser dito. E nesse momento percebo que Palmares vive em minha escrita! E minha escrita é também um brado que se soma a outros milhares de brados nesse país de desigualdades, de injustiças! E nesse momento Xangô se apresenta, a justiça se estabelece e mãe Bernadete vive! 

Não adianta seu “dotô” nós somos muitos, uma infinidade de seres que o “sinhô” e os intolerantes não tem capacidade de contar nem tão pouco de entender pois somos ao mesmo tempo seres humanos e não humanos, somos homens e somos mulheres, e nada e tudo; somos água, fogo, terra e ar, somos matéria e somos espíritos. Somos o ontem, o hoje e seremos o amanhã e nele não terá mais lugar para você seu “dotô”, para você intolerante, para você que não aceita o diferente de você, para você que ainda é capitão do mato e mata pela energia do dinheiro. 

Que nos perdoe, sim ‘nos’ perdoe, no plural, pois somos muitos a falar, a escrever nesse momento. Que nos perdoe o grande irmão e poeta José Carlos Limeira, pois… por menos que conte a história, não esquece o nosso povo! Palmares nunca morreu, Palmares somos nós, Palmares é o povo. Palmares está presente de novo!  

Maria Bernadete Pacífico, Mãe Bernadete, Yalorixá, PRESENTE! 

Waldson de Almeida Dias é servidor público municipal em Foz do Iguaçu.


Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do H2FOZ.

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1 comentário
  1. Júlia Alves Diz

    Somos todos quilombolas. Somos todos amefricanos. Mãe Bernaderte vive em cada um de nós que luta, resiste e reexiste cada día!
    Parabéns pelo texto.

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