A magia de correr na chuva

Pouco antes das primeiras passadas bateu a dúvida: será que vai dar merda? Três décadas atrás o clima de hoje seria o ideal para uma boa aventura para um adolescente de 15 anos, morador da Guarda Mirim.

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Por Alexandre Palmar

Pouco antes das primeiras passadas bateu a dúvida: será que vai dar merda? Três décadas atrás o clima de hoje seria o ideal para uma boa aventura para um adolescente de 15 anos, morador da Guarda Mirim. Era só combinar numa noite sábado com chuva para ter o programa ideal: bora pegar a magrela e pedalar pela Avenida Paraná. 

Mas os tempos são outros. Já não tenho mais a Caloi de alumínio, o Sony amarelo é peça de museu e o lencinho preto de caveira na cabeça à la Axl Rose nem pensar (só se for para camuflar os cabelos brancos). Trinta anos separam as paixões juvenis embaladas por Cure e Smiths deste ser que hoje em dia sonha em simplesmente correr a Meia Maratona das Cataratas. 

Ao afundar os pés na primeira poça d’água, lembrei-me, meio envergonhado, do tutorial do YouTube com dicas para correr na chuva: atenção redobrada para as poças (elas podem esconder um grande buraco); cuidado com as faixas pintadas no asfalto (é fácil escorregar nelas); e  tire a camiseta molhada após acabar o treino. Precaução nunca é demais. Afinal, se eu me esborrachar na pista, não sobra nada desta carcaça. 

Lembro-me bem de uma madrugada lá pelo fim dos anos 1980, comecinho dos 1990. Parecia que ia acabar o mundo. Trovões e relâmpagos para todo lado. De repente acaba luz dos postes. Eu andava a mil pelo acostamento. Quem disse que vi o começo do canteiro? Só deu o Salsicha comendo grama por uns 20 metros. Mas o que é um tombinho quando tudo na vida é uma descoberta? O que importa é a bike inteira.

Pisei leve na primeira poça que enfrentei, afinal não tinha para onde correr. Era água para todo lado. Vencido o primeiro desafio, segui num ritmo cadenciado. Aos poucos algo novo começou a surgir. Desta vez sem música (o medo de não ouvir algo tomou conta de mim) e sozinho no trecho, visto que a chuva forte afastou o povo. Essa combinação abriu-me os ouvidos.

O barulho da chuva invadiu os tímpanos, assim como tudo o que ela produz em noites assim. Deu para sacar bem a diferença entre o splash direito e splash esquerdo. Comprovei na prática aquilo que já suspeitava. Minha pisada esquerda é bem mais forte do que a direita – ratificando o exame do ortopedista que indicou leve diferença de tamanho das pernas. Barulhinho bom assim só em dias de chuva. 


Da mesma forma pude ouvir minha respiração com maestria. Acredito que pela primeira vez respirei cadenciadamente, apesar de a vontade de abrir a boca a toda hora para beber da chuva. Todos os sons parecem mais fortes, como o barulho do mundaréu de água descendo pela Avenida Venezuela, eclodindo de bueiros entupidos ou mesmo água espirrada pelo busão nas canelas. Diga-me, quem liga ao levar um banho de água suja diante dessa magia toda?

A chuva também aguça o cheiro das coisas, para o bem ou para o mal. Falar do cheiro da madeira e das folhagens molhadas, parece-me meio corriqueiro. Idem para o cheiro do asfalto encharcado. Não senti falta da poluição dos automóveis, cujo odores desta vez foram substituídos pelos de tudo o que é coisa ruim: galerias, esgotos e mijódromos fétidos. Pensando bem, o CO2 tem certa utilidade.

As três primeiras pernas (Paraná, Venezuela e JK) já tinham refrescado a memória quando veio a República Argentina. Instável nas últimas semanas, tenho desabado a essa altura. Transformo a corrida numa simples caminhada. Hoje foi diferente. Estava inteirão. Confiante, já não me importava com as poças. 

Segui firme e forte – de forma até meio distraída – até sentir-me um pato ao lavar meus joelhos no jato d’água em frente ao Exército. Quase perdi o equilíbrio e balancei feio. Estava ali na minha frente a tal merda agarrada. Abri o bico (que não é de pato) e gritei para equilibrar a dignidade e a integridade. Graças à perna esquerda não cai. Se tombasse ali (logo ali, logo nestes tempos), cairia numa galeria e achariam o cadáver rio abaixo.

Não senhor. Aqui não. Aqui é Guarda Mirim. Em frações de segundos me lembrei do injustiçado Judas e decidi que não iria trair minhas raízes. Recomposto, não amarelei e segui como Senna para completar uma volta magistral. Uma volta que talvez em condições climáticas normais jamais seria feita. Meu tempo? Acredite, o melhor em toda a minha história.

Alexandre Palmar é jornalista e iniciante em corrida. Argentino e brasileiro, mora em Foz do do Iguaçu desde 1979.

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