Foz do Iguaçu registra pelo menos quatro mil pessoas diagnosticadas com transtorno do espectro autista (TEA), de acordo com dados recentes do IBGE, referentes ao Censo 2022. Conforme o levantamento, a prevalência do autismo é maior entre homens (2.687) do que entre mulheres (1.463).
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Para compreender melhor esse panorama local e analisar como a cidade atende esse público, o H2FOZ entrevistou a psicóloga clínica Luisa Burt. Ela é mestranda em Relações Internacionais e se especializa em Psicoterapia para Adultos Neurodivergentes (TDAH, TEA e Superdotação/Altas Habilidades).
Além de ser autista, Luisa acompanha outros adultos autistas, com foco em casos de diagnóstico tardio. Ela também organiza o Grupo de Adultos Autistas de Foz do Iguaçu (GATEA).
Confira a entrevista completa:
H2FOZ: Luisa, como as famílias costumam lidar com o processo de aceitação do diagnóstico? Quais estratégias podem ajudar nesse momento?
Luisa Burt: As reações familiares diante do diagnóstico de autismo em um de seus membros são diversas e singulares. As famílias podem passar por uma ampla gama de sentimentos:
- culpa por não terem percebido sinais antes;
- alívio por finalmente encontrar uma explicação para comportamentos e vivências até então não compreendidos;
- negação do diagnóstico e de suas implicações, além de um luto simbólico pela imagem idealizada que se tinha da pessoa antes da confirmação.
Cada membro da família vivencia esse processo de maneira própria, com tempos e formas distintas de assimilação. Elaborar o diagnóstico inclui também a própria pessoa autista, cuja trajetória de entendimento e aceitação de si pode demandar etapas particulares e contínuas.
Entre as estratégias que podem auxiliar nesse período estão:
- acompanhamento psicoterapêutico para a pessoa autista e seus familiares;
- busca por informações de qualidade, baseadas em evidências científicas e produzidas por fontes confiáveis;
- estudo e aprofundamento sobre o autismo;
- respeito pelo tempo e processo emocional de cada pessoa envolvida;
- e, fundamentalmente, escuta atenta e reconhecimento do protagonismo da pessoa autista ao relatar suas experiências e necessidades.
Situação local
H2FOZ: Na sua visão, como Foz do Iguaçu tem acolhido pessoas que se enquadram no TEA?
Luisa Burt: Foz do Iguaçu ainda precisa avançar significativamente no acolhimento e garantia de direitos das pessoas autistas. Ainda é evidente a necessidade de maior capacitação e atualização dos profissionais da saúde, da educação e do serviço público em geral.
Infelizmente, persiste muita desinformação, preconceito e posturas inadequadas por parte desses profissionais, o que compromete o atendimento e o respeito às especificidades dessa população. Há uma carência visível de campanhas de informação pública sobre o autismo. Isso deveria ser uma responsabilidade permanente do poder público, abordando não apenas o que é o autismo, mas também suas implicações, necessidades de suporte e acomodações sociais.
Essa omissão contribui para a perpetuação do desrespeito, da intolerância e da invisibilidade das existências e direitos das pessoas autistas. Com base no que tenho acompanhado, escuto frequentemente relatos de pais, mães e cuidadores sobre a demora excessiva no acesso às terapias multiprofissionais na rede pública.
Essas terapias, que deveriam ocorrer de forma contínua, regular e qualificada, muitas vezes são esporádicas ou inacessíveis, comprometendo o desenvolvimento e a qualidade de vida dessas pessoas. No caso da população adulta, os relatos mais frequentes são as dificuldades de inserção no mercado de trabalho, as altas taxas de desemprego e a sobrecarga sensorial e emocional.
Além dessas questões, considero essencial implementar um censo municipal específico sobre pessoas autistas em Foz do Iguaçu, possibilitando um mapeamento real da população e de suas necessidades. Também é urgente criar um centro de referência especializado em autismo ou, ao menos, ampliar o acesso a terapias especializadas e a serviços públicos de qualidade para promover a inclusão e garantir direitos no município.
Diagnóstico
H2FOZ: O preconceito e a falta de informação ainda são barreiras para o diagnóstico e o tratamento do autismo? Como enfrentá-los?
Luisa Burt: Sim, o preconceito e a falta de informação continuam sendo barreiras significativas para o diagnóstico e o acompanhamento adequado de pessoas autistas. Um dos principais obstáculos é a persistência da ideia equivocada de que existe uma única forma de ser autista, como se houvesse uma apresentação ou imagem padrão que pudesse definir toda a diversidade presente dentro do espectro.
Essa visão limitada dificulta tanto o reconhecimento da condição por parte dos profissionais quanto a percepção da própria pessoa de que pode ser autista, especialmente quando suas características fogem dos estereótipos mais disseminados. Para superar isso, é fundamental desconstruir concepções rígidas sobre o que é ser autista e considerar as diferenças de temperamento, personalidade, cultura e contexto de vida de cada pessoa.
O autismo é multifacetado e suas manifestações variam de pessoa para pessoa. Enquanto prevalecer uma única imagem, muitas pessoas continuarão sem diagnóstico e, consequentemente, sem acesso às intervenções e ao apoio de que necessitam. É importante ressaltar também que o tratamento realizado com pessoas autistas não visa “tratar o autismo” propriamente, mas sim acolher, cuidar e manejar condições que possam estar associadas e comprometer a qualidade de vida da pessoa, como ansiedade, depressão, TDAH, transtornos alimentares, epilepsia, entre outras.
Garantir um diagnóstico assertivo e individualizado é o primeiro passo para que as intervenções sejam éticas, eficazes e respeitosas às singularidades de cada indivíduo. Assim, enfrentar o preconceito e a desinformação passa por ampliar o debate sobre o autismo.
Adultos com autismo
H2FOZ: Os adultos têm procurado o diagnóstico? Se sim, quais são os motivos? E àqueles que não têm procurado, qual é a orientação/conselho?
Luisa Burt: Sim, muitos adultos têm procurado o diagnóstico de autismo, impulsionados principalmente pela maior visibilidade e circulação de informações sobre o tema, especialmente nas redes sociais e outros espaços virtuais.
É muito comum que essas pessoas relatem sempre terem se sentido diferentes das demais, mas sem compreender exatamente o motivo. Muitos narram que, ao entrar em contato com relatos de outras pessoas autistas, passaram a se reconhecer nessas vivências e, pela primeira vez, a compreender aspectos importantes de suas histórias. Seja por meio de vídeos, textos, podcasts ou publicações.
Vale destacar que, embora a internet seja um importante espaço de acolhimento e troca, é imprescindível checar a procedência das informações disponíveis. Em caso de identificação ou suspeita de estar no espectro, buscar avaliação com profissionais especializados.
Amigos e familiares
Luisa Burt: Outro fator recorrente no relato de adultos que buscam diagnóstico é o contato com o diagnóstico de pessoas próximas, como amigos, colegas ou familiares. Muitos só passaram a desconfiar da possibilidade a partir da experiência de alguém próximo. Isso ocorreu comigo e com outros adultos autistas com quem convivo.
Contudo, há também casos em que adultos chegam à avaliação motivados pelo diagnóstico de um filho ou filha. Ao acompanhar de perto o processo da criança ou do adolescente e se identificar com características e comportamentos semelhantes vividos na própria infância ou adolescência, passam a buscar confirmação diagnóstica para si.
Além disso, para aqueles que não têm procurado avaliação formal, mas se identificam com características e vivências associadas ao autismo, é importante refletir sobre a possibilidade de realizar uma avaliação. Conhecer melhor a si mesmo, compreender a própria história e validar suas experiências é uma forma de cuidado e garantia de direitos.